A chuva ameaçou, mas não chegou a acontecer no primeiro dia de programação no palco principal do Funchal Jazz, no belíssimo Parque de Santa Catarina, suspenso sobre o oceano Atlântico. Ainda assim, quando terminou a prestação do incrível trio de Vijay Iyer, a sensação era de que toda a gente tinha sido levada (lavada?) na intensa corrente que as suas mãos, primeiro, os seus pés e o resto do corpo, depois, e a sua cabeça, enfim, geraram: a música que se desprende de si, entra no piano e depois sai pelo belíssimo e cristalino sistema de som dirigido ao público, é um caudal onde parece caber o mundo, onde certamente coexistem ecos de séculos de tradição erudita, blues e gospel, apontamentos de múltiplas culturas e fragmentos dispersos de novos territórios ainda não cartografados. A intensidade é tamanha que há momentos em que a plateia parece mesmo suspender colectivamente a respiração quando aguarda o que aquela mão esquerda vai fazer de seguida enquanto a direita nos mantém irremediavelmente sob o seu domínio.
Ao seu lado, Vijay teve, como ele mesmo cuidou de referir, dois pesos-pesados, “líderes de pleno direito com belos trabalhos lançados em nome próprio”: Harish Raghavan no contrabaixo e Jeremy Dutton na bateria. Juntos tocaram, sem pausas, sobretudo material de Compassion, o aclamado álbum que Vijay Iyer lançou já este ano na ECM em trio com a contrabaixista Linda May Han Oh e com o baterista Tyshawn Sorey, e do trabalho anterior, igualmente com Oh e Sorey, Uneasy (2021). Ainda que esses dois músicos sejam gigantes, a verdade é que Harish Raghavan e Jeremy Dutton brilharam de forma intensa durante o concerto de ontem. O contrabaixista tem uma presença incrível, um tom fundo e nobre e logo no primeiro solo deixou a sua própria marca distinta, com uma demonstração de classe absoluta na forma redonda com que responde à tal torrente do líder, com frases de elegância plena, mas também de grande inventividade e assertividade, capaz de equilibrar groove com abstracção, às vezes na mesma frase. Já Jeremy Dutton é uma autêntica fera, que nos seus próprios ensembles já dirigiu talentos gigantes como Ambrose Akinmusire e Joel Ross. Com um toque subtil, cheio de swing, Dutton comanda o tempo sem nunca se impor e é a fundação certa que consegue suportar o peso do caudal gerado por Iyer.
O concerto do trio foi longo, emocionalmente variado, capaz dos momentos mais intepestuosos e das passagens mais poéticas e até comoventes. O próprio Vijay não se cansou de explicar que deu aos seus dois mais recentes álbuns em trio os títulos Compassion e Uneasy porque “compaixão é o que mais precisamos nestes tempos complicados que vivemos”. O pianista avisou logo no arranque da noite que o trio gosta de usar as suas telepáticas capacidades para “tocar sem pausas”, mas que isso não devia impedir ninguém de aplaudir quando quisesse. E o público respondeu a isso, com entusiasmo e vigor, irrompendo espontaneamente em aplausos nos momentos mais vívidos da apresentação e nos solos mais arrebatadores. Numa escala de 0 a 10, este concerto foi um sólido 9 durante boa parte do tempo, nunca tendo descido abaixo do 8. Ou pelo menos foi assim que se sentiu, numa noite fresca atmosfericamente, mas aquecida pela torrente de energia com que Vijay Iyer nos brindou.
A abertura da noite e do palco coube ao Madeira Jazz Collective dos irmãos Alexandre e Francisco Andrade, o primeiro trompetista, o segundo saxofonista, e ainda de Ricardo Sousa, trombonista, Décio Abreu, guitarrista, Ricardo Dias, contrabaixista, e Paulo Gouveia, baterista. Um grupo escorreito, que por vezes soou — mérito dos arranjos — como uma mini big band, elegante até na sua escolha de camisas e com cada um a ser capaz de mostrar boas capacidades solistas, embora pratique um jazz by the book, sem qualquer assomo de risco ou ruptura. Mas música elegante e segura também é música e o Madeira Jazz Collective coloca em cima dessa solidez o mérito adicional de interpretar bom material original, com arranjos capazes de extrair o melhor de cada um dos músicos presentes. Nota adicional para Décio Abreu (não é meu familiar), que não se apagou no meio de três sopros e soube mostrar ideias próprias e uma técnica bem apurada, mesmo quando se limitava a assegurar as despesas harmónicas dos arranjos.
Belíssima primeira noite no Parque de Santa Catarina, portanto. Houve torrente, mas ninguém foi levado na enxurrada.
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