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Fotografia: João Pereira
Publicado a: 24/02/2022

Na sombra mas com luz de presença.

Fumo Ninja no Cosmos: nada nesta vida é prometido

Fotografia: João Pereira
Publicado a: 24/02/2022

O salão denunciava o sítio; uma entrada de palacete cuidadosamente mal cuidada, como é costume os jovens de classes supra média altas se apresentarem, a contrastar com o moderno bar interior. Esta forma inconsciente de se auto-satirizar, tomando as posses e privilégios e estilizando-os de decadência, levanta questões essenciais sobre a relação entre estilo e conteúdo; conseguirá um beto alguma vez deixar de o ser? A porteira cobra o bilhete e explica a associação; tudo bem (se já ouvimos “cosmo betos” por aí como denominação para os betos cosmopolitas, o termo tomou um significado muito próximo naquela noite).

Os Fumo Ninja tocavam num ringue, que à priori julgámos ser central, mas estava encostado ao fundo da sala rectangular, iluminado contra uma parede de espelhos virada para o público. Esta foi a primeira impressão que tivemos: o reflexo do corpo recortado da audiência contra a escuridão do fundo da sala.

Dão-nos um ambiente cru e de improvisação livre ainda que guiados pela estrutura das canções pop. Heterodoxo descreve-o bem. A improvisação ocupa um espaço equilibrado, muitas vezes entre canções. Umas vezes terminavam a capella, momentaneamente tornados num bonito coro, outras a puxar os galões do free. Há momentos em que, como uma respiração subitamente cortada, sente-se uma paragem em palco, um ponto de viragem que marca a passagem da experimentação para a assunção, e faz-se conexão entre os músicos participantes desse rito. Um desses momentos foi uma interação entre a teclista e o baterista, conversa improvisada entre dois instrumentos complementares. Apanhámos o exacto momento em que ambos largaram o pensamento consciente, castigador, e se entregaram ao fluxo de seja o que for a que chamamos free. A tarola ao que parece está equipada com sensores que captam as tacadas em modo e intensidade em cada sítio da pele, sinal que é mapeado para cada som escolhido. Ou seja, por cima de um solo energético de bateria, soavam as gotas de água e outros sons anónimos, obtendo resposta velosa e eruptiva das teclas moduladas. A conversa entre os dois ficou bem registada na memória enquanto inícios de uma promissora dinâmica que pode muito bem ser explorada.

Portanto, estes “ninjas” apoiam-se sobre três principais camadas; o formato de canção pop e a experimentação sonora e a improvisação, o que não é de estranhar dado o background de cada músico. É tanto um refresco para as orelhas cansadas da rádio como para as calejadas da clássica. O baixo estava com rugido, e Norberto Lobo não deixou o potencial para o noise por usar. As linhas de baixo carregam em conjunto com a bateria de Ricardo Martins o groove das canções mais arrojadas, dando muitas vezes KO no tempo certo, como uma direita de Mike Tyson. Em “Chapada Da Deusa”, o single que lançaram, Leonor Arnaut demonstra a sua mestria de técnica vocal num vibrato detalhado, aparentemente impassível tal como shuffle de Ali. Fleuma que aparentou manter também esta noite na voz e na condução do seu aparelho de efeitos vocais guiado, dando a dimensão não-linear que a pop anseia. Raquel Pimpão explora abertamente o que as teclas não fazem por si, sempre responsiva aos estímulos dos outros players, com reflexos como os do Maywheather, e com uma sensibilidade rara de se ver em ringue. Apresentaram ainda uma nova canção, “Tristeza”, muito bonita, sofrendo apenas pelas condições de som do local. O verdadeiro sinal de uma banda fértil.

Na última canção, Arnaut apoia-se às cordas, mas quem precisava de recuperar éramos nós das rajadas de fumo musical que estes “ninjas” levantaram. O álbum sai para fins de Março, algo que esperamos não passar despercebido, ainda que ninja.

Sobre o Cosmos, na verdade, não incomodam nada distinções estilísticas e de classes sociais quando só queremos beber uma cerveja em paz num sítio escuro onde se possa fumar.


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