Quase 30 anos volvidos desde os primórdios da Força Suprema, não resta assim tanto para conquistar. Erguidos na Linha de Sintra mas com raízes na banda, tornaram-se verdadeiras estrelas em Angola. Em Portugal, o país para onde vieram com a família nos anos 90, onde refizeram as suas vidas e a partir do qual construíram a sua carreira, a aclamação generalizada pode ter tardado, mas são hoje autênticas referências e pilares do rap nacional, um reconhecimento que é consensual.
Por todas as críticas que ouviram por serem considerados americanizados, por todas as vezes que foram colocados de lado e marginalizados num género que por si só já era estigmatizado, os Força Suprema ultrapassaram os obstáculos e saíram por cima, como que numa revolta das ovelhas negras. O tempo dar-lhes-ia razão — também havia espaço para estéticas mais digitais e electrónicas, para outro tipo de bounces, e para explorar rimas de hustle e ostentação. Era a afirmação de quem crescera sem nada e de repente tinha razões para celebrar, um subtexto mais político do que pode parecer à partida.
NGA, Don G, Masta e companhia — aos quais depois se juntou Prodígio — também são, de certa forma, pais do trap português, que 20 anos depois da génese do colectivo viria a dar frutos e a espalhar-se como um vírus incontrolável. Com uma identidade bem vincada, também influenciaram o rap das ruas que se pratica na lusofonia, os hinos motivacionais dos underdogs, as canções de amor que fizeram rolar o clima.
Depois de tocarem nalguns dos maiores palcos do país, e de o fazerem também em diferentes países, de conquistarem placas e mais placas com os seus discos, de lançarem projecto atrás de projecto (são tantos que nem os próprios conseguem traçar a sua imensa discografia), aos Força Suprema só resta mesmo celebrar tudo aquilo que concretizaram e concretizam, o seu legado que está mais do que vivo, as vidas melhores que proporcionaram a si próprios e aos seus.
“Se não se lembrarem de mais nada desta noite, lembrem-se disto: estes pretos da Linha de Sintra conseguiram”, disse Prodígio na noite desta quinta-feira, 27 de Fevereiro, no palco do Musicbox, em Lisboa. “Obrigado a vocês por tudo. Graças a vocês, nunca tive de trabalhar”, afirmou o rapper, explicando que para si a música, por mais processos trabalhosos que possa envolver, nunca carrega esse peso.
O pretexto era a apresentação do novo álbum, Baseado em Factos Reais, construído em exclusivo por NGA e Don G — mas com os contributos de uma série de convidados que reflectem os diferentes territórios que pisam, desde o rap da velha escola de Ace e Mundo Segundo à frescura de Mizzy Miles, passando pela ginga angolana de Paulo Flores, os refrões orelhudos de Rahiz ou SP Deville, os samples evocativos de Boss AC ou Regula.
Mas o que se verificou em palco foi, acima de tudo, uma celebração despreocupada do seu trajecto — numa casa pequena mas intimista, repleta de alma e história, recheada de fãs vibrantes a entoarem aquelas faixas como hinos, desde as mais recentes àquelas que já se tornaram clássicos supremos. Os Força Suprema poderiam certamente ter ambicionado um palco maior — ainda há três anos fizeram o Coliseu dos Recreios — mas preferiram fazer a festa num reduto underground com os seus admiradores mais próximos, o que permitiu outro tipo de interacção, chamando inclusive fãs ao palco para interpretarem alguns temas. Numa era em que cada passo artístico é escrutinado, estrategizado e ponderado ao pormenor, a leveza de consumar uma noite destas, sem grandes desassossegos, também merece ser aplaudida.
O alinhamento, naturalmente, passou pelo novo álbum, com destaque para “Chapa Quente”, “Cofre Vazio” e “Camisa Branca” — mas foi muito além, equilibrando bangers emblemáticos como “Pra Merda Não Volto” ou “Snifa Cada Linha” com temas melosos e açucarados como “Serias Tu” ou “Deixa o Clima Rolar”, que até representaram uma percentagem significativa do repertório escolhido, também um indício de um rap mais amadurecido e adulto, menos juvenil e explosivo, um registo que pauta particularmente o novo álbum. A presença inesperada de Prodígio em palco também levou a que diversas faixas com a sua participação ou da sua autoria merecessem protagonismo.
Mais do que tudo, foi uma noite de comunhão com os fãs, os que tornaram possível o sonho e materializaram o legado, mulheres e homens, peles negras e brancas, entrelaçadas entre a multidão que compôs a sala — e que se identifica com os versos, os sons e talvez sobretudo a atitude de quem sempre foi inquieto, audaz e destemido, tanto nas ruas da Linha de Sintra como nos maiores palcos da indústria. A herança está viva e a Força Suprema prossegue o seu império sem grandes entraves; sobretudo, sem os limites tantas vezes impostos pelos próprios artistas; com uma determinação e uma disciplina inabaláveis.