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Fotografia: Francisco “Queragura” Gomes
Publicado a: 05/06/2024

O funaná como música de revolta.

Fogo Fogo: “A cantiga ainda é uma arma!”

Fotografia: Francisco “Queragura” Gomes
Publicado a: 05/06/2024

Entre os seus Poemas Inconjuntos, escrevia Alberto Caeiro que “quando está frio no tempo do frio, para mim é como se estivesse agradável”. Tudo certo para um poeta bucólico, para quem as dificuldades da vida eram um destino da existência, mas não para os cinco poetas sónicos de Fogo Fogo, para quem o frio nunca poderia ser sinónimo de resignação e conformismo, mas antes de contraste, resistência e fuga. Só isso pode explicar como é que perante o severo inverno de Celorico de Basto, com a neve a espreitar no topo da Serra do Viso, ergueram aquele que será um dos trabalhos mais quentes, fervorosos e calorosos do ano. 

Nha Rikeza, o segundo álbum de originais da banda, é uma síntese do calor que corre no sangue de David Pessoa, João Gomes, Danilo Lopes, Francisco Rebelo e Edu Mundo, e da sua irresistível tentação pela fricção, pela eletricidade e pelo psicadelismo. Trata-se, como aqui revelam, de um disco que nasceu de um esforço de composição coletiva, e de uma vontade de não repetirem a fórmula com que nos últimos dois anos conquistaram o país com a digressão em torno de Fladu Fla. O resultado são treze temas que tanto consolidam a identidade sónica da banda, assente na força elétrica de um funaná moderno, inventivo e psicadélico, como ao mesmo tempo irrompem por diálogos estéticos com outros géneros, ritmos e influências, do reggae à morna, do ska ao afrobeat, do rock espacial e psicadélico ao funk afrodiaspórico. Riqueza, neste caso, também quer dizer isso mesmo: a capacidade de expandir horizontes com a segurança de quem tem consciência da história em que se está a inscrever. 

É essa consciência histórica, acreditamos, que faz com que este álbum seja também um amplo comentário social e político, que sem perder a poesia revela urgência em enfrentar os problemas presentes. É o que se nota nas letras, mas também nesta entrevista, onde não se inibem de falar dos processos de gentrificação e da instrumentalização dos músicos; da precariedade do setor cultural e da predação entre a classe artística; da falta de condições laborais e da ausência de uma estratégia para a cultura; das propostas inaceitáveis de promotores e da nova indústria do unanimismo e da massificação. Afinal, como aqui lembram, funaná é música de revolta e o baile em que estão investidos não é uma festa de alienação e entretenimento, mas uma dança consciente das misérias do mundo e da urgência que temos de as exorcizar.



Normalmente as músicas e os álbuns refletem os contextos da sua criação. Neste sentido, como é que no inverno frio de Celorico de Basto nasce um disco quente de funaná? 

[João Gomes] Com ar condicionado [risos].

[Francisco Rebelo] E com umas mantas [risos].

[David Pessoa] Ao longo do tempo chegámos à conclusão que para fazermos um disco novo era necessário sairmos da nossa zona de vivência e reunirmo-nos num outro sítio. Um grande amigo nosso, o Artur Marisca, conseguiu esta oportunidade de o Município de Celorico de Basto nos acolher durante duas semanas divididas para uma residência artística de criação. Já tínhamos tocado lá, correu muito bem e ficámos com uma boa relação. As condições que tivemos foram incríveis e conseguimos criar à vontade. A temperatura é diferente, claro, mas acho se fossemos para o Polo Norte faríamos um disco igualmente quente. 

[João Gomes] Nós imaginámos que estávamos em Roterdão [risos]. 

[Edu Mundo] Em todo o caso, é relevante o disco ter sido feito num sítio com muito frio. Para quem quer fazer qualquer coisa deste género, o frio também ajuda a desejar o oposto. 

A procurar o contraste? 

[Edu Mundo] Sim. Estar num sítio com frio clarifica. Se estivéssemos a fazer músicas que não fossem assim tão quentes, não nos sentiríamos defendidos naquele frio. Todas as músicas que saíram também foram uma reação a esse estado meteorológico e climático. Nós saíamos da sala, vínhamos cá fora fumar um cigarro e havia neve no topo. 

Essa imagem é curiosa, porque o funaná nasceu no interior da ilha de Santiago, com aquele clima quente, árido e de secas prolongadas. Imaginar um disco de funaná construído no meio da neve é algo até poeticamente interessante.

[João Gomes] Eu falava de Roterdão justamente por isso. Alguns dos melhores discos de funaná e da música de Cabo Verde foram gravados lá, ou em Lisboa, ou em França, tudo sítios mais frios que Cabo Verde. A parte do calor acho que vem da identidade da banda.

[Francisco Rebelo] É o calor da mente.

[João Gomes] Se calhar o frio do contexto em que estávamos estará refletido noutros lados no disco. 

Em 15 dias de residência nasceram 13 músicas, estamos a falar de quase uma música por dia. Tentando transportar-nos para essa residência, como foi o processo criativo? Levaram material de base ou foi tudo construído lá?

[David Pessoa] Até fizemos mais músicas que não entraram no disco… 

[Edu Mundo] Falando do processo, há um trabalho paralelo que fazemos, que na verdade é mais curtição, e que acontece quando estamos na estrada. Vamos na carrinha muitas horas, ficamos presos naquele big brother andante e temos muitos momentos de espera. Esperas pelo hotel, esperas pela carrinha, esperas por chegar ao sítio, pelos jantares… Em muitos desses momentos nós levamos as guitarras, fazemos desgarradas, e há alturas em que alguns de nós ganham uma cumplicidade e inventam qualquer coisa. Essas cumplicidades têm consequências, porque surgem esboços, pequenos esquiços, que podem ser uma melodia, uma letra, ou às vezes um riff

E registam isso?

[Edu Mundo] Sim. Quem cria esses esboços regista, mas tende a não avançar muito. Quando nos juntamos em residência, a primeira fase do processo passa por tentar rever todos esses esquiços para começarmos a trabalhar em músicas. Mas há também outras músicas que só surgiram lá. 

[Francisco Rebelo] É um processo baseado no princípio da composição, em que quem já vem com alguma ideia mais esboçada apresenta ao grupo e depois o resto é massa crítica.

[David Pessoa] A partir dessa base são os cinco a trabalhar, cada um com as suas influências. 

Poderíamos então dizer que Nha Rikeza é um disco que foi nascendo na estrada durante os dois anos da digressão do Fladu Fla?

[Edu Mundo] Se pensarmos na criação desses esquiços iniciais, sim. 

[David Pessoa] Quando decidimos fazer a residência, houve a premissa de trazer as ideias em aberto. Normalmente eu e Danilo temos a tendência para trazer a música já muito construída, mas nestas residências houve a preocupação de não levar ideias fechadas para haver espaço para os cinco. A ideia era trabalharmos como banda e este disco reflete muito isso. Por isso é que em duas semanas fizemos uma música por dia, mais aquelas ideias que acabaram por não entrar. 

Foi uma residência bem aproveitada…

[Danilo Lopes] Sim, porque quando fomos para residência já tínhamos oito anos de cumplicidade. Já sabíamos o espaço onde cada um pode contribuir, como tirar proveito uns dos outros. O disco foi composto de uma maneira muito orgânica e natural. Em algumas canções, definiu-se a estrutura, a melodia, mas a letra foi feita depois. 

[João Gomes] As letras deixámos mais para a posteriori. Na residência criámos sobretudo as ideias musicais e confiámos que depois as letras iriam aparecer naturalmente. 

Foi então a música que conduziu o processo e não propriamente as temáticas do álbum?

[João Gomes] Sim. Mas muitas vezes, por exemplo, estávamos a fazer uma música e no almoço, enquanto conversávamos, surgia uma ideia para a letra. 

[Edu Mundo] Aconteceu numa das músicas fazer-se uma letra para vestir a melodia, percebemos que a letra não era para ali e fez-se outra. Às vezes é uma tentativa/erro. Não há um método em série, cada música vai escolhendo o seu próprio caminho para nascer. 

Nos últimos dois anos vocês deram uma média de dois concertos por mês com a digressão de Fladu Fla. Em jeito de balanço, sentem que há um espaço de crescimento em termos de público e de salas para o funaná no conjunto do país e não apenas em Lisboa e no Porto? E quando é que, no meio dessa digressão, decidiram que tinha chegado o momento de parar para a criação de um novo trabalho? 

[João Gomes] O Fladu Fla foi gravado em fevereiro de 2020, apesar de só ter saído em setembro de 2021. Já tinham passado 3 anos e tínhamos vontade de fazer mais músicas. Mas além disso, foi também uma necessidade de trabalho, de termos de marcar presença neste mundo cão. Um disco é um cartão de visita, é um pretexto para trabalhar, para continuar a existir. 

[Edu Mundo] Até porque o CEO do Spotify diz que um disco de 3 em 3 anos é preguiça. [risos]. Vá-se lá saber porque diz isso…

E sentem que a digressão desse primeiro álbum de originais ampliou o vosso público e o número de salas disponíveis para este tipo de música?

[David Pessoa] Acho que sim, tocámos em mesmo muitos pontos do país.

[João Gomes] Talvez, mas não sei até que ponto não uma sensação falsa. Nós tínhamos essa sensação, mas a verdade é que o álbum coincidiu com uma época super especial, que foram os anos pós-pandemia. Houve dois anos em que os músicos ficaram impedidos de trabalhar e acumularam-se muitos espetáculos. Acabámos por ter muitas datas, mas neste momento não estou a ver uma perspetiva assim tão boa quanto ao futuro. 

[David Pessoa] Mas apesar de tudo, acho que com o Fladu Fla alargámos muito para além dos centros urbanos. Lembro-me de estarmos em Moledo e estar malta na primeira fila a cantar as letras todas em criolo. No Algarve também, em sítios muito pouco óbvios. Eu sinto que o disco chegou a muita gente e que era preciso dar continuidade a isso com este novo disco. 

Do ponto de vista sonoro, e como se percebe logo ao primeiro segundo de escuta, este novo disco mantém-se fiel ao funaná. Mas, ao mesmo tempo, têm aqui outros diálogos com a morna, com o afrobeat, com o reggae, com o ska, com linhas mais psicadélicas, e até de rock espacial. Essas diálogos e fusões estéticas foram algo que aconteceu naturalmente ou foi uma decisão consciente de experimentação?

[Francisco Rebelo] Foi um bocado as duas coisas. Nós não queríamos fazer um segundo disco igual ao primeiro, nem queríamos ficar presos apenas à bitola do funaná. Havia a vontade de explorar outros ritmos e sonoridades, mas procurando manter a nossa identidade. Algumas músicas, nas ideias-base, já tinham esse pressuposto de experimentação. Depois a residência serviu para experimentarmos até onde podíamos ir e como poderíamos variar de ritmos, experimentar coisas mais psicadélicas e mais arrojadas.

Até há manipulação de vozes em alguns temas.

[Francisco Rebelo] Essa parte já foi feita na pós-produção. Depois de termos as bases gravadas já vais para uma direção estética mais precisa. Mas na génese das canções já havia a vontade de diversificar. Muitas vezes estávamos a trabalhar num determinado tema e parávamos para introduzir uma secção e ver se funcionava. O disco é consequência disso. Para além de funaná tens, inclusive, ritmos que nem são muito comuns, como o 5/4. Foram experiências engraçadas, mas que mantêm aquilo que é a identidade da banda. 

[Edu Mundo] O funaná acaba por ligar tudo, porque mesmo nessas experiências, a tentativa é sempre pensar como poderíamos vestir um funaná de maneira diferente, ou como poderíamos trazer um ritmo que se aliasse ao funaná. 

Na entrevista que nos deram em 2021, mencionavam uma conversa com os Ferro Gaita em que eles diziam que vocês podiam ser mais livres a fazer funaná a partir de Lisboa porque não estavam tão expostos ao olhar e à crítica dos tradicionalistas em Cabo Verde. Neste disco têm os próprios Ferro Gaita como convidados e queria perguntar-vos sobre como olham para este diálogo intergeracional com a música tradicional cabo-verdiana. Sentem que há hoje uma maior abertura para esse diálogo? Estamos num momento de renovação do próprio estilo ou continua a existir essa fricção com uma herança considerada mais tradicional ou formalista?

[Danilo Lopes] Acho que essa renovação da música de Cabo Verde é um movimento que existe há muito tempo e que ajudou a que novos projetos também fossem aceites lá. Podemos pensar em exemplos como a Mayra Andrade, o Tcheka, o Bilan, ou também o Cachupa Psicadélica, embora ele tenha um estilo mais fora do tradicional. Eu faço parte desta geração de Cabo Verde que já cresceu com o rock. Estou a falar no início dos anos 2000 para a frente, em que houve uma mudança. Mas na verdade, mesmo o Orlando Pantera já trouxe o batuku tocado com instrumentos de cordas e não apenas com txabeta. Tudo isso ajudou a que houvesse essa abertura que os Fogo Fogo estão agora a usufruir. Toda a abertura anterior fez com que o nosso estilo seja mais aceite. Apesar de nós também estarmos a viver numa confusão ideológica em que se fala muito de apropriação cultural. A música é como a língua. A língua é viva, assim como a música, e são as pessoas que fazem a música viver. 

[João Gomes] De qualquer das formas, nós não pegamos num ferro, numa gaita e fazemos funaná tradicional. O próprio funaná que inspirou a nossa sonoridade já é uma sonoridade de fusão e que caminhou para o mundo do rock. O Katchás não estava a tocar gaita, estava a tocar uma guitarra elétrica e era fã de Jimi Hendrix. Tudo isso já é um diálogo entre a tradição e o ocidente, entre África e o futuro. Nós estamos nesse diálogo como portugueses e africanos, como lisboetas, que sempre foi um caldeirão dessas culturas que fazem a cidade. 



Em relação às temáticas do álbum, abordam aqui vários assuntos como o amor “sem credo e sem cor” em “Amor Amor”; o bullying em “Nhô Buli”; a crise da habitação em “Um Casa Pa Morá”; ou as questões da imigração e da diáspora “A Ilha”. Tendo o disco começado pelas ideias musicais, como é depois escolheram as temáticas para abordar? Que comentário social quiseram trazer com este novo trabalho? 

[David Pessoa] Somos uma banda do tempo em que vivemos e achamos que é importante falar desses assuntos, dessas temáticas sociais que nos são tão presentes. 

[João Gomes] Somos banda de funaná, que é uma música de revolta!

[David Pessoa] Além disso, o funaná, e tal como acontecia antigamente, pode ser usado num ritmo super-rápido, mas também como música não necessariamente de intervenção, mas de manifestação de sentimentos, quase como um blues. Temos tudo isso no álbum, mas achamos que é fundamental continuar a cantar sobre o tempo em que vivemos. A “Um Casa pa Morá ”, por exemplo, fala da crise na habitação, que é algo muito presente na nossa cidade e não só. Sempre gostámos de ter essa vertente porque não fazemos só música para dançar. Ou melhor, fazemos música para dançar, mas há sempre uma mensagem mais direta ou mais subliminar. Temos isso sempre presente e achamos que é um aspeto muito relevante na nossa identidade musical. 

[João Gomes] A cantiga ainda é uma arma!

Partindo da “Um Casa Pa Morá”, queria perguntar-vos sobre os processos de transformação que estão a acontecer em Lisboa. Enquanto banda, vocês começaram na Casa de Independente, que hoje está prestes a encerrar.

[David Pessoa] Para ser mais um hotel…

Toda aquela área do Intendente, aliás — que até há pouco tempo era um ponto de circulação de culturas, de pessoas, um espaço público com vários usos, e de conflito também —, atualmente está num processo de higienização pela indústria hoteleira e turística, e deixou de ser um ponto de encontro cultural. Vocês que tocam em Lisboa há tantos anos, como é que vêem este processo e como é que acham que os poderes públicos deviam olhar para este circuito cultural e da música ao vivo? 

[Francisco Rebelo] Há várias questões que estão subliminares nessa problemática. A questão em que mais tenho pensado tem a ver com a ausência de um pensamento estratégico para a cultura. Precisamos de uma estratégia diretora que permita, por um lado, a criação de espaços, sejam eles privados ou municipais, e por outro lado, a criação de equipas de programação que conheçam o território e as suas necessidades, que sejam inclusivas, que formem públicos. Era importante uma rede que permitisse a circulação não só dos residentes do território, mas que também incluísse a integração de projetos de outros municípios. O que tenho notado em Lisboa é essa ausência de estratégia e de equipas concertadas na compreensão do território e das suas necessidades. Precisamos de uma estratégia que dê oportunidades a toda a gente e não ofereça apenas os grandes artistas e o mainstream nas festas da cidade. 

Vocês estão há dez anos a tocar numa cidade que esteve sempre a mudar. Para além dessa ausência de estratégia, que balanço fazem das mudanças da cidade?

[Danilo Lopes] Podemos dar o exemplo do Intendente, que foi onde toquei pela primeira vez com o João [Gomes] na Orquestra Todos.  

[João Gomes] Foi noutro mundo… Quando a Orquestra Todos começou era outro Largo, era outro Intendente. 

[Danilo Lopes] Mas fez parte dessa transformação. Nós tocámos no Largo do Intendente com a Orquestra Todos, que fazia parte deste movimento de recuperação daquela área. O que acontece é que muitas vezes a cultura e os artistas acabam por ser usados para a gentrificação das cidades. Normalmente os artistas chegam, transformam a área onde estão e depois são forçados a sair pelo aumento dos preços e da especulação. Está a acontecer agora no Beato. 

[João Gomes] A ideia é usar os artistas para valorizar essas áreas e depois ganhar dinheiro a vender casas e a fazer hotéis. No Intendente, durante 5 anos foi muito fixe o que aconteceu. Criou-se ali um movimento cultural, tornou-se uma zona viva e atraente e depois entrou o imobiliário e começaram a vender tudo para construir hotéis. Agora só os turistas é que vão para lá…

[Francisco Rebelo] Foi feito um esforço há dez anos, concretamente no Intendente, em que se tentou compreender culturalmente como se podiam incrementar algumas ideias para aquela zona. E percebeu-se que existia público, que as pessoas vão aos sítios quando as coisas se tornam interessantes, quando há oferta diversificada. Mas ao longo do tempo as coisas mudaram e já nem temos tantos lisboetas residentes como tínhamos na altura. 

[Edu Mundo] Mesmo as pessoas que já estavam lá há dez anos, agora são vistas como perigosas. 

[João Gomes] Antes as pessoas da zona eram vistas como “exóticas”, era um “novo mundo”, agora aquela já é uma zona “perigosa” e é preciso tirar as pessoas de lá. 

[Francisco Rebelo] Além disso, eu sempre achei que Lisboa nunca teve uma grande oferta de salas. O que acontece agora é que com a proliferação da hotelaria e o turismo, muitos dos espaços que existiam são cada vez mais canalizados para alojamentos de férias e para hotelaria. 

[João Gomes] Eu acho que não há falta de salas. O que há é falta de dinheiro para pagar aos artistas.

Ainda recebem propostas absurdas para tocarem?

[João Gomes] Claro. Acontece a toda a hora, propostas de concertos de borla, ou a pagarem 75 euros por músico… 

[Edu Mundo] Inclusive tens uma predação da própria comunidade musical. Acontece em salas mais pequenas alguém de uma banda ir falar com o dono do espaço e dizer que toca mais barato do que a banda que está a atuar. Da mesma forma que alguns projetos nacionais grandes, que têm estruturas para tocar para 20 mil pessoas, de repente fazem um trio e comem os concertos dos teatros e das salas mais pequenas. 

Pensando nesta relação entre o espaço, a cidade e a música, vocês fazem música de baile e de festa e tocam em alguns circuitos crescentemente marcados pela turistificação da cidade. Como é que se faz um baile festivo e ao mesmo tempo consciente? Como é que a vossa música consegue contrariar a sua instrumentalização para vender uma determinada imagem de uma Lisboa “multicultural” apenas para turista ver?

[João Gomes] Nesse aspeto não há muito a fazer além de durante os concertos falarmos do que nos passa pela cabeça e das nossas opiniões. Mas de resto, para tentarmos sobreviver muitas vezes também somos comidos. 

[Danilo Lopes] E temos de falar português [risos].

[Edu Mundo] Há sempre uma fasquia de pessoas que não entende a língua. E mesmo os que entendem a língua, muitas vezes não estão a ouvir as letras, estão só dançar…

[João Gomes] Mas em relação ao que estás a dizer, também é importante mencionar que nós recusamo-nos a tocar se nos oferecerem metade do nosso cachê. 

[David Pessoa] Temos um posicionamento enquanto banda de dizer não a certas coisas. Essa é a única maneira também de combater esse lado mais vicioso. 

Acham que devia haver mais estruturas coletivas de artistas, de tipo sindical ou cooperativo, para que os músicos estivessem mais unidos e se defendessem mais coletivamente e não de forma isolada?

[Francisco Rebelo] Acho que sim, mas é muito difícil. Eu sou sócio do sindicato, do CENA-STE, mas são sempre estruturas débeis. Na realidade, a classe dos músicos não é uma classe unida. O pessoal tenta safar-se e desde que se safe tá-se bem. É difícil as pessoas tomarem uma atitude conjunta no sentido de reivindicarem melhores condições. 

[Edu Mundo] É utópico um boicote geral, por exemplo.

[João Gomes] Utópico, mas aqui seria muito mais fácil que noutros sítios! Somos um país pequeno e temos uma indústria que não é uma indústria, em que grande parte das pessoas não consegue fazer disto a sua atividade principal. 

Ainda há uma grande precariedade no setor.

[João Gomes] Claro. São poucas as pessoas que conseguem viver apenas profissionalmente da música. Se comparares com o Brasil, as duas maiores indústrias exportadoras são o futebol e a música. Em Portugal o futebol é uma indústria exportadora, mas a música não. 

[Francisco Rebelo] Pegando noutro exemplo, nos Estados Unidos não podes entrar num clube e dizer ao gajo da sala que vais tocar mais barato que o outro. O sindicato não permite isso. Mesmo na Europa, tens países em há uma cultura à volta da música. Quando tens, por exemplo, grupos que vêm de países africanos ou do Brasil, que têm uma logística mais cara, as várias comunidades reúnem-se e estabelecem protocolos, partilhando despesas e permitindo aos artistas fazerem uma tournée com cinco ou seis datas. E tens ainda uma diferença em que o público paga os concertos e não existe aquela cultura de pedirem sempre uma borla, como acontece aqui. Há movimentos associativos e espaços comunitários que não estão à espera do apoio camarário ou do patrocínio. São espaços que têm a cultura da música. É a tal história da formação de públicos… Em alguns desses contextos o público foi formado no sentido da descoberta, também do prazer, claro, mas com essa disponibilidade para conhecer coisas novas.  

[João Gomes] Mas em muitos países também há um acesso a muito mais coisas há muito mais tempo. Antigamente Portugal estava muito mais isolado…  

[Edu Mundo] E a acrescentar a essas questões, há também, em muitos contextos, um sistema de curadoria interessante. No Holanda, por exemplo, normalmente quem vai experienciar um concerto paga uma anuidade. Isso acontece cá no CCB, por exemplo. Esse compromisso dá logo uma margem de manobra à produção e ao curador. 

Mas sendo Portugal um país de baixos salários, é difícil imaginar que um sistema desses funcionasse para quem quer ter acesso a uma oferta cultural diversa. Quantas anuidades teria de se assinar?

[Edu Mundo] Sim, mas existem outros mecanismos. Como tens apoio para o passe de transportes, em muitos contextos também tens mecanismos desses para a cultura. 

[João Gomes] Isto são questões que têm a ver com as dimensões e as políticas de cada país. Mas nós poderíamos contornar algumas dificuldades e até seria fácil ter uma política de apoio a uma maior circulação pela Europa. Para nós é muito difícil que bandas portuguesas tenham poder para penetrar nos mercados europeus. 

Porque é que acham que isso acontece?

[João Gomes] Porque é preciso investir. Quando vais tocar a um outro país, se quiseres ter lá um jornalista para cobrir o concerto, ou tens de lhe pagar ou tens de ter uma empresa de promoção a convencê-lo a ir ver o teu concerto. Se tu consegues, por exemplo, uma data em Madrid, não vais lá ter a imprensa espanhola a não ser que vás lá dez vezes seguidas. Mas como é que vais lá dez vezes? 

Voltando ao que falávamos antes, o crescimento do turismo em Lisboa não se parece ter traduzido numa maior internacionalização da sua música. 

[Danilo Lopes] É como Veneza. Todos conhecemos Veneza, mas quantos artistas de Veneza conhecemos?

[João Gomes] Tinha de ser o Estado e o país a investir. Se o país não mostra que há músicos…

[Francisco Rebelo] E se não se mostra também a diversidade… Eu conheço casos de artistas portugueses com nome, embora não sejam do mainstream, a quem foi recusado um simples apoio de uma viagem de avião, quando esses artistas iam representar o país ao estrangeiro. A resposta é sempre que não há condições. Para além dos programas de apoio da DGArtes, faltam outras políticas, apoios e projetos. 



Recentemente participaram no novo álbum de Nancy Vieira e assinam uma nova versão da música “Palestina” no novo disco do Janita Salomé. O Amaro Freitas esteve também em Portugal há pouco e tempo e mencionou-vos com um dos grupos com quem ficou mais interessado em colaborar. Pensando nestes encontros, como projetam o futuro e que caminhos poderemos ver os Fogo Fogo percorrer? 

[Francisco Rebelo] Ao longo da nossa caminhada na Casa Independente, fomos sempre abertos a explorar colaborações e estivemos quase dois anos a dar concertos com convidados. Isso foi muito importante porque admirávamos essas pessoas e aprender esse repertório enriqueceu-nos musicalmente. Ainda não tínhamos trabalhado com a Nancy Vieira, mas ela lembrou-se de nós e ficámos mesmo muito felizes. Com o Janita Salomé, a história já vem de há uns anos, com uma colaboração entre ele, o Sam the Kid e os Cool Hipnose, numa homenagem que fizemos ao Zeca Afonso. Essa ligação ficou e o Janita ligou-me porque queria fazer uma revisão ao seu repertório e gostaria muito de nos convidar. É também um músico que admiramos e foi uma experiência muito enriquecedora. Algumas dessas colaborações podem tirar-nos um pouco da zona de conforto, mas tornam-se desafios importantes. 

[João Gomes] Em relação ao futuro, queria só voltar ao que o Chico respondeu no início. Nós procuramos não repetir ideias e não voltar a fazer as mesmas coisas. Por isso temos muita abertura para o que vier e o nosso futuro a deus pertence [risos]. Podemos manter a matriz do funaná como proposta original, mas desde início que dissemos que a ideia é procurar ligações e homenagear a música de dança lusófona. 

Pensando na música lusófona nos últimos anos assistimos ao crescimento do número de artistas africanos, negros e imigrantes com projetos artísticos que vão do rap à música eletrónica, do jazz aos estilos tradicionais, e que projetam uma ideia de um país mais aberto, diverso e plural. Ao mesmo tempo, a afirmação dessa música parece ter contrastado com o crescimento de forças conservadoras, racistas e de extrema-direita que dominam hoje muito dos nossos debates. Parece haver dois movimentos aqui, o político e o cultural, que estão em contradição. Tanto observamos uma praça com um concerto aberto e diverso, com gente de várias origens compartilhando essa união…

[João Gomes] E ao mesmo tempo tens as pessoas à janela dentro dos prédios à volta a remoerem-se por causa dos imigrantes e dos estrangeiros… 

Porque é que esta cultura assente na diversidade não conseguiu penetrar de forma mais efetiva no campo da política? 

[João Gomes] Falhámos. Falhámos. 

[David Pessoa] E tem muito a ver com a verdadeira importância que enquanto país se atribuí à cultura. 

[Edu Mundo] Um país que dá 0.25 % do seu orçamento a uma determinada área revela muito sobre o valor de prioridade que considera que essa pasta tem na sociedade. Acho que o problema começa logo por aí. Mas também tem a ver com o facto de ainda vivermos num país em que ainda é muito grande o medo perante a diferença.

A cultura tornou-se mais aberta, mas não conseguiu contrariar esse medo?

[João Gomes] A questão é que a cultura está sempre a lutar. É uma entrada à força! A cultura está sempre a lutar e as poucas coisas que consegue é sempre contra o Estado, contra o aparelho, contra os gajos do 0.25%, que estão sempre a sufocar e a espezinhar. Além de que a maioria das pessoas, quando vê televisão, o que vê são os 4 canais, não vai ver o Canal 180

[Danilo Lopes] Quando não entra pelos meios de comunicação que o povo vê, esta cultura fica muito balizada pelas diferentes tribos onde se manifesta e tem dificuldade em extravasar para fora. Era importante, mas se a cultura não é uma prioridade, esse extravasar não vai acontecer. 

[João Gomes] E se depender dos políticos, isso não vai mesmo acontecer. 

[Danilo Lopes] Numa cultura que é residual, e quando tens hostilidade, as próprias tribos podem ficar mais fechadas entre si porque são um ponto de proteção. Por exemplo, os cabo-verdianos podem dar-se mais com os cabo-verdianos, porque se sentem mais seguros. Apesar de sermos uma sociedade multicultural, esses efeitos existem. 

[Edu Mundo] Além disso, mesmo a própria noção de cultura tem vindo a mudar. Se até há algum tempo a música era vista como um caminhar no sentido de encontrares a tua própria personalidade, a tua voz e a tua verdade, atualmente parece que já não se quer lutar por isso, mas por uma ideia de unanimidade e aceitação. Parece que hoje interessa mais ser identificado e aceite por massas, do que teres uma voz particular. 

Mas sentem que isso acontece mais hoje que há dez, quinze ou vinte anos atrás?

[João Gomes] Acontece mais porque as redes sociais se transformaram no barómetro. Os likes são o barómetro. Quando eu era miúdo, um disco que toda a gente tinha perdia valor porque já era comercial, não era underground. Um disco que só eu tinha era muito mais valorizado. E aquela banda alternativa que só um gajo no teu liceu falava, toda a gente ficava fascinado por ser uma cena obscura. Até havia esse termo “obscuro”, que era um adjetivo bom. Atualmente “obscuro” é o “looser”, é um termo pejorativo. 

O próprio Spotify até já determinou que não pagará direitos sobre músicas que não tenham mais de mil streams, ou seja, não pagará direitos sobre 60% do catálogo.

[Edu Mundo] Pois. É mais um sintoma dessa mudança. Mas isso separa as águas. Se até há pouco tempo a expressão cultural era vista como uma forma dos artistas se procurarem a si próprios…

[João Gomes] Isso agora é visto como elitismo e dizem-te que queres ser “especial”!

[Edu Mundo] Além disso, hoje em dia também há outra coisa…

[João Gomes] Há o teleponto? [risos]

[Edu Mundo] [risos] Esta é a minha opinião, não necessariamente a deles, mas atualmente não se sabe bem se o talento está no artista ou na máquina que o promove. A luta agora parece ser encontrar massas que se agradem com o artista e que isso se possa refletir em likes. Há muita gente nessa encruzilhada entre procurares essa adesão imediata ou procurares tua voz individual, mesmo que isso implique um lugar mais marginal.

O que mudou aqui também foram as formas de consumo da música? Com o streaming, redes sociais, mudou-se a relação entre o público, os artistas e a formação do gosto?

[Edu Mundo] Hoje algumas rádios são agências musicais, sobretudo as que têm mais eco, e têm direito a parcelas quando se enche um Coliseu. Isso não se sabe muito, era fixe as pessoas saberem isto. Há artistas que não conseguem encher um Coliseu, mas outras propostas conseguem encher três porque são promovidas por determinado tipo de altifalantes. Não quer dizer que essa outra coisa tenha menos qualidade, mas as máquinas são diferentes.

[Francisco Rebelo] Em relação a essa massificação, e à forma como somos julgados pela quantidade de views ou de likes, tu assistes hoje nas redes sociais, para quem começa, à promoção do “marketing digital”.  Às vezes nem interessa saber o produto: “O que tu precisas mesmo é de um bom marketing digital!”. E também assistes à quase anulação da formação musical com os sites que vendem beats, samples, e que te dizem que não precisas de aprender nenhum instrumento. 

[Edu Mundo] Se até há pouco tempo no staff dos concertos iria um diretor musical, um desenhista de backdrops ou de palco, hoje em dia vai o cabeleireiro, os maquilhadores…

[João Gomes] E o fotógrafo.

[David Pessoa] E o gajo do vídeo. 

[Francisco Rebelo] E o gajo das redes sociais.

[Edu Mundo] Essas figuras estão na entourage, dentro da comitiva, e há quinze anos não estavam. Foi a própria noção de cultura que também mudou.


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