É no Entroncamento que reside o Museu Nacional Ferroviário, que detém uma das mais importantes colecções de comboios ao nível da Europa. É aqui mesmo que, por entre carruagens antigas, símbolos de diferentes épocas, que se faz o Festival Vapor, um evento que cruza música, performance, cinema, literatura, teatro, exposições, oficinas e atividades para todas as idades, que em 2024 chega à sua 4ª edição. Aproveitando o meio em que se encontra inserido, o certame adopta o imaginário do steampunk, um sub-género da ficção científica que se baseia numa ideia de retrofuturismo, colando a estética punk à tecnologia do século XIX, tendo com principais referências as máquinas movidas a vapor.
Ao primeiro dia, 27 de Setembro, as portas abriram apenas às 20 horas para aquela que foi a sessão programática mais curta do festival. Ao entrarmos pela porta do Museu Nacional Ferroviário, quase que parece que atravessámos por um qualquer portal que nos transporta a uma outra dimensão. São muitas as pessoas que se vestem a rigor — dos fatos e vestidos meio burlescos aos óculos de protecção de aviador e às cartolas — para intensificar a experiência dos presentes por entre o recinto. Há muitas bancas de vendas de artigos alusivos ao conceito steampunk, um food court e um par de palcos — um interior e um exterior.
Foi no palco montado dentro de portas que a música ao vivo se manifestou na noite de ontem. Denominado de Naves, o espaço recebeu um par de concertos para animar os festivaleiros que vieram dar força ao arranque do Vapor. A atitude punk é transversal à curadoria musical deste evento, e os primeiros a demonstrá-la foram os Conferência Inferno, banda portuense formada por Francisco Lima, Raul Mendiratta e José Silva que tem ajudado a manter vivo em Portugal o movimento da new wave. Bazar Esotérico EP (2019), Ata Saturna (2021) e Pós-Esmeralda (2023) são os três discos editados pelo trio e todos eles foram revisitados durante a actuação que teve início às 21h30.
É impossível escutar a voz de Francisco sem notar nela a influência de Rui Reininho, mas aqui ela chega-nos aos ouvidos com uma dose extra de sofrência, mais arrastada, veiculando palavras de amargura, mas também de uma certa boémia. Em algumas das canções, Kiko faz-se acompanhar também de um baixo do qual dispara as linhas melódicas centrais a esses temas. Mas em termos de instrumentação, as criações dos Conferência Inferno assentam, acima de tudo, na electrónica, neste caso através de sintetizadores e drum machines, que trazem à música do grupo a sua componente dançável. O seu som é nostálgico e difícil de ignorar, mas falta, talvez, um twist ao repertório que apresentam para quebrar com uma certa monotonia que se sente a partir da primeira meia hora de espectáculo. Ainda assim, não deixam de ser um conjunto com uma sonoridade muito vincada e que é pouco explorada no nosso país nos dias que correm.
O segundo e último acto estava marcado para as 23 horas. André Henriques, Cláudia Guerreiro, Hélio Morais e Rui Carvalho subiram ao palco que fica montado por entre uma série de comboios em exposição, o cenário desta sala Naves que muito dificilmente encontramos igual em qualquer outro espaço de concertos no mundo. Toda esta maquinaria pesada casa bem com a brutalidade do rock alternativo deste quarteto, cujo “peso” se nota tanto nos instrumentos — duas guitarras, baixo e bateria sempre a “rasgar” — como na poesia embalada pela voz de André Henriques, muito crua e visual, que transporta uma série de dores e traumas da vida.
Curiosamente, a actuação aconteceu precisamente no dia em que a banda deu a conhecer o EP Tudo E O Seu Contrário, que consiste num par de novas canções que ajudam a antecipar o álbum que se avizinha, planeado para ser editado em 2025. Depois de celebrarem 20 anos de carreira em 2023, os Linda Martini estão agora prontos para seguir para um próximo capítulo discográfico, mas confessaram ainda não conseguir interpretar ao vivo os temas lançados ontem — “Faz-se De Luz” e “A Cantiga É”. Em contrapartida, entregaram-nos dois inéditos: “Mau Deus”, que é “dedicada aos senhores da guerra e da paz”; “Corações Rápidos”, que versa sobre os que amam depressa e tropeçam. “Uma Banda”, editada em Junho e que fala sobre a coragem que é apostar num projecto de banda nos tempos que correm, também integrou a setlist.
Oleados como nunca, os quatro elementos demonstraram sempre muita química quer no entrelaçar do som dos seus instrumentos, quer nos diálogos irónicos que iam tendo uns com os outros entre músicas. “Super Fixe”, “Boca de Sal”, “Amor Combate”, “Cem Metros Sereia” e “Dá-me a Tua Melhor Faca” foram algumas das malhas que não faltaram num espectáculo que se prolongou por pouco mais de uma hora e que teve um falso encore — “Vamos fingir que vamos sair e voltar”, atiraram em jeito de brincadeira antes de se fazerem às derradeiras duas faixas.