Pode justamente dizer-se que ninguém regressa ao Festival MED, porque quem já alguma vez experimentou percorrer as ruas do centro histórico de Loulé durante qualquer uma das suas anteriores edições, quem sentiu os aromas de diferenciadas gastronomias, trocou olhares e sorrisos com gente de todo o lado, escutou sons familiares ou absolutamente estranhos, mas sempre cativantes, nunca mais volta realmente a sair de lá. Ainda que a experiência dure apenas alguns dias, passa-se o resto do ano a pensar no que por aqui se descobriu e o lugar e a experiência passam a ser permanentes, senão no plano real, pelo menos no pensamento e na memória.
Este ano, o MED arranca em modo celebratório: atinge-se o redondo aniversário de 20 anos e acolhe-se pela primeira vez um país convidado, neste caso o “vizinho” reino de Marrocos, lugar mágico com que temos históricas ligações e ponto de origem de uma cultura tão única quanto rica. Esse espírito de festa sentiu-se de forma notória entre as gentes que ontem, quinta-feira, 27 de Junho, ocorreram em massa à jornada inaugural desta edição de 2024. Pelas ruas da vila histórica passava uma energia especial, que só se desprende nestes dias de MED, com pessoas tão diferentes quanto unidas neste comum propósito festivo, de partilha de diferentes culturas, de celebração, através do canto e da dança.
Para lá dos palcos, as ruas iam sendo animadas por diferentes colectivos performativos das artes de rua: virar uma esquina podia levar ao encontro de um rancho folclórico local, ou de um par de entidades multicoloridas, em muito elevadas andas, que atraíam a atenção dos mais novos sempre curiosos com estes alegres e tão incrivelmente equilibrados “gigantes”.
Mas é na programação musical que o MED tem sempre o seu ponto alto, e no primeiro dia desta edição de 20º aniversário houve muitas e variadas propostas.
O périplo começou com a enérgica apresentação do duo formado pela cantora Widad Mjama e pelo músico Khalil Epi, símbolos perfeitos da modernidade electrónica marroquina que arrancaram os primeiros aplausos efusivos no palco Chafariz ao cair da noite. Por esse mesmo espaço passou ainda o projecto nacional Albaluna que para a sua envolvente performance convidaram ainda o artista egípcio Ahmed Hamdi Moussa, num perfeito exemplo da capacidade de harmonização entre diferentes culturas. No Chafariz, a noite fechou-se com a música “não polida” bem mais do que “ligeiramente experimental” do quarteto da Reunião (os classificativos são mesmo deles) Mouvman Alé, uma bem psicadélica proposta que nos transportou para outros lugares.
O Palco Cerca é sempre um dos principais epicentros dos benignos abalos proporcionados pelo MED. Logo após a hora de jantar, esse espaço recebeu os incríveis Cara de Espelho de Pedro da Silva Martins, Carlos Guerreiro, Nuno Prata, Luís J Martins, Sérgio Nascimento e Maria Antónia Mendes, eles que assim regressaram a Loulé após a apresentação, noutro contexto e espaço, daquele que é um dos mais surpreendentes trabalhos da música portuguesa dos últimos anos.
A Cerca ontem vibrou ainda com os deveras empolgantes 47SOUL, grupo palestiniano nascido na Jordânia e os ultra-originais Kin’Gongolo Kiniata que trouxeram para o coração de Loulé um pouco da particular energia das ruas de Kinshasa, no Congo. Houve dança desenfreada a acompanhar, pois claro, mas o tempo não foi aliado e a apresentação durou menos do que prometia.
Onde também não houve falta de movimento colectivo e dança empenhada foi junto ao palco Matriz que começou por receber a multicultural “colectividade” Kumbia Boruka que reúne músicos de vários países da América Latina, mas tem base de trabalho em França, base de onde têm viajado para toda a Europa exportando o particular groove dos sistemas de som rendidos à cultura da cumbia. Ontem, no MED, espalharam bem-vinda alegria, pode dizer-se. Pelo Palco Matriz passaram ainda os agitadores Dubioza Kolektiv da Bósnia, embaixadores de boas-vibrações e resistência.
Pelo mais recatado espaço do Palco Castelo, perante uma plateia confortavelmente sentada, apresentou-se o trio de João Frade. Nesta formação de craques, aquele que é apontado como um dos melhores acordeonistas portugueses faz-se ladear pelos talentosos músicos cubanos Michael Olivera e Yarel Hernandez. Mas como se não bastasse, ao trio juntou-se ainda o trompetista de Sarajevo Miron Rafajlović. Com um som pleno de balanço e groove, mas com a inventividade do jazz por dialecto comum, este quarteto deixou a audiência autenticamente hipnotizada. Por este concorrido Castelo passaram também os ultra-curiosos, super originais e impecavelmente vestidos Puuluup, dupla que dá nova vida a tradições antigas da Estónia e do Norte da Europa. O público rendeu-se incondicionalmente.
Houve muito mais no dia inaugural do MED nesta edição de 20º aniversário: houve cinema e poesia e arte espalhada por diferentes lugares, delícias gastronómicas de Marrocos e a música de nobreza espiritual singular de Ballaké Sissoko cuja kora soa sempre capaz de nos transportar para uma dimensão onírica. E para isso, onde, bastou cerrar os olhos.
De facto, até se pode tirar a pessoa do MED. Impossível mesmo é tirar o MED de todas as pessoas que por ali dançam, sonham, sorriem e viajam, para muito longe, por vezes até às estrelas. E mais além.
*Rui Miguel Abreu foi convidado pelo Festival MED a apresentar a sua visão do evento