Partiu aos 75 anos o cantor, autor, compositor e arranjador Fausto Bordalo Dias. Nascido em pleno oceano, entre Portugal e Angola, a bordo do navio Pátria, no que se revelaria um presságio da sua intervenção artística, construiu ao longo de mais de meio século uma das mais ricas, inventivas e influentes obras da música e cultura portuguesa. Uma obra que acompanhou a própria história contemporânea do país, desafiando, complexificando e, portanto, construindo, tanto musical, como poeticamente, a própria narrativa que contamos sobre nós próprios enquanto comunidade.
Começou a tocar viola e a cantar no liceu, em Angola, onde integrou o grupo Os Rebeldes, tendo aí composto as primeiras canções e criado as primeiras experiências, que mais tarde haveria de desenvolver minuciosamente, moldando uma identidade única, singular e profundamente contemporânea. Chegou a Lisboa em 1968, tempo de guerra colonial e de convulsão no país, para estudar ciências sociopolíticas no Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina, ou ISCSPU — sigla que, fruto da militância antifascista e anticolonial, haveria de deixar cair o “U”, na sequência da Revolução portuguesa de 1974/75 e das independências dos países africanos. Antes disso, Fausto envolveu-se fortemente no movimento estudantil dessa época e que teve um papel decisivo no fim da ditadura em Portugal, chegando a ser eleito presidente da Associação de Estudantes em 1972, eleição que o regime não reconheceu, impedindo-o de exercer o cargo.
Recusando o serviço militar obrigatório, interrompeu os estudos e viveu na clandestinidade, sempre envolvido, tanto musical como politicamente, no movimento associativo, estudantil e político de combate à ditadura, no qual conheceu companheiros como José Afonso e Adriano Correia de Oliveira, com quem começou a colaborar logo em 1970, atuando em coletividades, associações e universidades. Com eles, e muitos outros, haveria de participar no movimento de renovação estética, poética e ética da música popular portuguesa, que hoje continua a inspirar múltiplas gerações que procuram descobrir as suas próprias histórias, linguagens, ritmos e poéticas sobre o país que fomos, somos e podemos ser. Nesse caminho de renovação nasceu também a moderna canção de intervenção e protesto que, citando o seu companheiro José Afonso, se trataria de uma canção que “implica um envolvimento como identificação crescente do próprio cantor com aquilo que se está a passar nas diversas lutas por mais heterogéneas que sejam, nas quais ele de certo modo intervém, não apenas ao nível da canção”.
É também na base dessa identificação que o músico participa no histórico I Encontro da Canção Portuguesa, no Coliseu dos Recreios, a 19 de março de 1974 — evento que, simbolicamente, anteciparia a liberdade que seria conquistada nas ruas do país poucas semanas depois, ao som daqueles que aí se juntaram, enfrentando a censura, e mostrando o que afinal significava uma “cidade sem muros nem ameias”. E a história seguiria o seu rumo, logo depois do golpe do 25 de Abril, rapidamente transformado em processo revolucionário, e que reconheceu muitos dos seus intérpretes musicais logo a 5 de maio, no Palácio de Cristal, no Porto, no I Encontro Livre da Canção Popular, no qual Fausto participaria, onde foi lido o manifesto do Colectivo de Acção Cultural (CAC) e de onde depois iriam emergir vários grupos e coletivos, nomeadamente o Grupo de Ação Cultural, que acompanharam e refletiram o percurso da revolução e a diversidade das suas correntes ideológicas, políticas e também estéticas.
Apesar do seu primeiro fonograma ser ainda de 1969, Fausto preferia que a sua discografia começasse a ser contada a partir desse ano de 1974, quando edita P’ro Que Der e Vier, com Arnaldo Trindade, recuperando parte das gravações feitas em Madrid, antes da própria revolução, contando com a participação de José Afonso, Adriano, Júlio Pereira, Vitorino, entre outros, e onde constam temas marcantes como “Não Canto Porque Sonho” ou “Patrão e nós”, tema fundamental para qualquer curso de crítica da economia política.
As lutas faziam-se, a história escrevia-se, e a música acompanhava a esperança e as tensões, as dúvidas e os desalentos. Surge, então, Um Beco com Saída (1975), editado no alvor do processo revolucionário, cujos dilemas e encruzilhadas o disco interroga, mesmo que ainda não antecipasse inteiramente o que significaria a contrarrevolução novembrista e como ela haveria de pôr fim à imaginação de outras formas do político que se experienciaram nesses meses.
A vida continuou então o seu curso, tal como as lutas sociais, feitas de avanços e recuos, também eles refletidos, dois anos depois, em Madrugada dos Trapeiros (1977), onde se cantaram alguns dos versos que ecoam até hoje nas ruas: “De velhas casas vazias, palácios abandonados, os pobres fizeram lares / Mas agora todos os dias, os polícias bem armados desocupam os andares / Para que servem essas casas, a não ser para o senhorio viver da especulação / Quem governa faz tábua rasa, mas lamenta com fastio a crise da habitação / E assim se faz Portugal”. A crítica continuava lá, e sempre esteve lá, inteligente, aguda e lúcida, na viragem para a década de 1980, bem ao lado de uma emergente abordagem poética que produziu as incontornáveis e intemporais “Se tu fores ver o mar (Rosalinda)” e “Atrás dos Tempos”, esta última que haveria de se tornar uma marcante reflexão de balanço do tempo vivido que se encerrava, mas sempre sem ceder cinismo, nem tampouco à nostalgia. Como sintetizava: “Atrás de tempos vêm tempos e outros tempos hão-de vir”.
Já emergia, também nessa época, uma estilização própria e um original recurso à rítmica tradicional que haveria de ser marcante nas obras seguintes. Os tempos mudavam, é certo, e Portugal reconstruia com os pés a sua identidade, varrendo o passado colonial e imperial para baixo do tapete. Seriámos, agora, enterrado definidamente o decrépito império, um país moderno, europeu, cosmopolita, “regressado” ao seu território original, embora nunca enfrentando a própria narrativa herdada da ditadura — do elogio acrítico da expansão do estado português ao colonialismo, da epopeia acrítica das descobertas ao lusotropicalismo como elementos fundamentais da nossa história e identidade. Era, então, também o tempo do emergente nacionalismo pop, anunciando “bravas danças dos heróis” e vaticinando que dos fracos não rezaria a história. Tudo com muita cor e amor, modernaço e cintilante, quase mesmo inebriante, não fosse obra de Fausto introduzir um pauzinho na engrenagem triunfante, operando como um contraponto estético e narrativo, e vinculando uma intenção, relativamente solitária à época, em abordar a complexidade do passado e das suas heranças, as ilusões e as suas tragédias, as suas esperanças e desventuras. Fê-lo, logo em 1979, com História de Viageiros, onde na cobiçada Nau Catrineta se deitava à sorte quem se haveria de comer para matar a fome. Uma aproximação, diríamos, para o que veio a suceder em 1982, onde o seu gesto ganhou um verdadeiro alcance com a edição de Por Este Rio Acima, uma das obras mais marcantes da história musical.
Partindo das Peregrinações, de Fernão Mendes Pinto — um livro que lhe tirou o sono — e de muitas outras fontes (Bernardo Gomes de Brito, Cadamostro, Diogo Eanes de Azurara, Silva Porto, entre outros) desafiou uma outra narrativa em torno história da expansão portuguesa, assumindo a sua complexidade, rompendo com a epopeia gloriosa e militar, e acrescentando outras camadas a uma história que, mesmo sendo contada a partir do ponto vista português, sempre foi avessa à propaganda nacionalista. Gravado com Júlio Pereira, Pedro Caldeira Cabral, Rão Kyao e Eduardo Paes Mamede, o disco ganhou relevância não só pelo que representou como gesto de intervenção narrativa sobre a história, e, portanto, sobre o presente, como também pela sua inventiva estilização, articulando a narrativa poética aos padrões rítmicos tradicionais, da chula ao malhão, do vira ao corridinho, reconfigurados em composições, arranjos e harmonizações que definiram uma estética que articulou a entoação vocal, a centralidade poético-narrativa e a prosódia do baile mandado, intensificando a intenção expressiva da música.
À aclamação desse trabalho, hoje considerado um dos marcos fundamentais da música portuguesa, irá suceder-se o segundo gesto artístico de uma trilogia, Crónicas da Terra Ardente (1994), infelizmente menos estudado, desta feita inspirado sobretudo na História Trágico-Marítima, de Bernardo Gomes de Brito, e de onde emergiram impressionantes temas como “A Chusma Salva-se Assim”, “Gargalham Muito as Sarracenas”, “Os Soldados de Baco”, “Pela Fome Comidos”, sem esquecer a irresistível delicadeza da “Todo Este Céu”.
Entre esses dois discos fundamentais editou ainda Despertar dos Alquimistas (1985), Para Além das Cordilheiras (1987), este último vencedor de um Prémio José Afonso, e A Preto e Branco (1988), um objeto muito singular da sua discografia, onde homenageou poetas africanos, cantando Ernesto Lara Filho, Mário António, José Craveirinha, Viriato da Cruz, António Jacinto, Ovídio Martins, Rui Nogar e Alexandre Dáskalos. Até ao final do século seguiram-se ainda Atrás dos Tempos Vêm Tempos (1996), uma coletânea de repertório selecionado, e o épico Grande, Grande é a Viagem, registo da gravação de um concerto no CCB, realizado em 1998, e felizmente registado em áudio e vídeo para a posteridade.
Nessa viragem do século estava já consolidada uma estética distinta e incomparável, tanto devedora do profundo estudo e respeito pelo repertório popular, com especial atenção e detalhe às suas dimensões rítmica e percussiva, que conhecia minuciosamente, quanto às influências por outras heranças partilhadas, de África e do Oriente. Construiu, também por isso, uma forma única de abordar a guitarra acústica, sempre fixo às cordas de aço, de onde extraia melodias paradoxalmente elaboradas e intuitivas, imediatamente reconhecíveis por todas e todos em que em algum momento se encontraram com a sua obra. Nunca se deixando aprisionar por ideia rígida ou congelada da tradição, ampliou os caminhos hoje percorridos pelas novas gerações de autores e compositores da música portuguesa.
A entrada nos anos 2000 trouxe-nos menos registos discográficos, embora nunca uma ausência da cena artística, tendo dado diversos concertos nos últimos anos, do CCB à Aula Magna, do Bons Sons ao Terreiro do Paço, passando por múltiplos teatros municipais e, claro, pela participação nos Três Cantos, encontro histórico e inesquecível onde juntou a sua a voz à de Sérgio Godinho e à de José Mário Branco.
Como últimos gestos da sua discografia editou, em 2003, A Ópera Mágica do Cantor Maldito (2003), belíssima narrativa satírica sobre esse “cantor maldito”, acompanhado à ilustração por José Ruy, e onde desde cedo se avisa que “qualquer semelhança com a realidade não é mera coincidência, logo, é pura ficção”; e anos mais tarde, já em 2011, Em Busca das Montanhas Azuis, o derradeiro gesto de encerramento da trilogia da diáspora, um dos melhores e mais completos discos da sua carreira, tocante e cativante de início ao fim, e que se já mesmo a acabar se deixa concluir apenas com voz e piano, numa declamação íntima e profundamente tocante, dedicando à mãe “O Perfume das Chuvas”. Diz assim:
“Chegaste no rasto da luz pela água
ao deserto da areia florida
Welwitschia Mirabilis
e nunca mais
uma andorinha
tão breve que fosse
deixou de voar
nas asas leves e azuis
do planalto da minha infância
eu sei que te abandono
quando agora parto pela orla de todos os mares
nas tu ficas
para sempre
no perfume das chuvas
Alice”
Até sempre Fausto. Obrigado.