Foi logo em Janeiro que Mia Tomé lançou o álbum Há um Herbário no Deserto, onde canta e declama a poesia de Emily Dickinson. O disco, gravado no Oracle Recording Studio, no Deserto de Sonora, Arizona, é hoje dissecado pela autora no ReB.
Mia Tomé é uma artista que transforma a palavra em música e a poesia em espectáculo. Formada em teatro pela Escola Superior de Teatro e Cinema e pela prestigiada The Lee Strasberg Theatre and Film Institute, em Nova Iorque, como bolseira da Fundação Gulbenkian, construiu uma carreira onde a voz é tanto instrumento quanto expressão artística. Do spoken word ao canto, tem-se dedicado a resgatar e reinventar a poesia no feminino, como no Projeto Natália, que levou a palavra de Natália Correia a palcos internacionais.
A sua ligação ao Arizona nasceu em 2021, durante uma residência artística da FLAD – Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento, onde mergulhou no universo das “Mulheres Artistas do Oeste”, explorando a intersecção entre música, poesia e imagem. Em 2022, ao lado do produtor Francis Kelly, gravou Há um Herbário no Deserto, um LP que ecoa a poesia de Emily Dickinson em paisagens sonoras que atravessam o folk e a pop. O seu percurso inclui actuações em espaços emblemáticos como o Harvard Club, Dartmouth e festivais na Alemanha, além de colaborações com nomes como Noiserv, Elisa Rodrigues e Alex & The Moondaze.
Hoje mesmo, 21 de Março, em que se assinala o Dia Mundial da Poesia, Mia Tomé apresenta Há um Herbário no Deserto ao vivo no Auditório Almeida Garrett, no Palácio de Cristal do Porto. Domingo, dia 23 de Março, será a vez da Estufa Fria, em Lisboa, testemunhar as criações florais da artista.
[“Welcome to Sonora Desert”]
Este é o instrumental de abertura do álbum que nos introduz ao Deserto de Sonora e às cores da poesia de Emily Dickinson. No estúdio, dei como referência um navio que chega a voar pelo deserto, entre nevoeiros e terras vermelhas. Usámos metalofones, e vários tipos de percussão para criar a sensação de “areia a ser remada”. Esta melodia nasce já quando eu estou no Arizona e me sentei ao piano para brincar com alguns acordes (os poucos que sei)… nasceu esta melodia pela noite fora. Mostrei-a ao Francis, partilhei o que tinha em mente e ele concordou em absoluto com a ideia. Este tema apresenta-nos o lado teatral do disco, funciona como um prólogo cheio de presságios.
[“Pudesse eu infinita cavalgar”]
O 1.º tema do disco em voz cantada, com um dos poemas mais bonitos que Emily Dickinson escreveu. Sem dúvida que, para mim, este poema é uma espécie de Manifesto Feminista do século XIX, e mal o li, percebi que tinha que o gravar. Este tema evoca a figura de uma mulher livre, que cavalga no seu cavalo em busca do mundo, que quer viver a natureza livre como uma abelha. Para mim, esta é também uma referência às “Mulheres do Oeste Americano” que tantas vezes foram silenciadas e reduzidas a papeis secundários em vários filmes Western. Esta é, mais uma vez, uma forma de fazer justiça a essas figuras heróicas que não foram assim tão celebradas na ficção.
[“De quem são estas camas”]
Este poema viaja mais uma vez pela natureza tão celebrada na obra de Dickinson, as flores e as suas espécies: Dickinson criou um herbário a partir da vegetação do Massachusetts, extremamente bem organizado e catalogado. Aqui criámos um “herbário sonoro” a partir da vegetação do Arizona. Um tema ao piano (bem melancólico), que é também sonoplastizado com sons gravados e recolhidos no deserto. Fomos pelo pôr-do-sol procurar o canto dos pássaros, os passos nos vales, o andar na areia… a água do Rio Colorado que está tão presente nesta paisagem do Southwest. Como estávamos longe do Colorado, para terminar fomos à piscina do Rancho gravar o som da água. Recordo-me que encontrámos uma caixinha de música perdida no estúdio (muito antiga mesmo), e decidi usá-la para terminar o poema enquanto temos o piano ao fundo, como se um espírito de Oracle se apoderasse do piano e tocasse solenemente para nós. Oracle, o lugar onde fica o estúdio, é extremamente místico, e pela madrugada, quem não conhece o espaço, pode ser um bocadinho assustador, a força da natureza é extremamente poderosa, parece que os cactos e as montanhas conseguem falar e podemos escutar as suas vozes.
[“Como as Montanhas Gotejam de Sol-Pôr”]
Um dos meus temas preferidos do disco, foi composto pelo Alex Tighe. Partilhou comigo que tinha escrito este tema há vários meses, mas não sabia o que fazer com ele, nenhuma letra que ele tivesse escrito ficava bem nestes acordes. Quando experimentámos com este poema em português, ficámos perplexos porque parecia que tinha sido exatamente composto para aqui. As melodias, e a guitarra como foi gravada, para mim descreve a essência de Sonora, de Tucson e de Oracle. O poema oferece as imagens perfeitas de um pôr-do-sol laranja que só no Arizona se consegue avistar. O poema fala-nos também das pinturas Ticiano e Domenichino, mas onde a natureza será sempre superlativa a qualquer pintura humana.
[“Uma Dama vermelha na colina”]
Este tema começa com um coro gravado pela Nicosa e por mim. A Nicosa é extremamente talentosa e muito sensível, cantautora e multi-instrumentista nascida em Rio Rico, Arizona. Pedi-lhe para gravar um assobio para começarmos o tema antes dos coros, e recordo-me de ficar arrepiada com a forma como ela o fez. Parecia algo ancestral, que vem de um lugar antigo cheio de histórias. Para mim, este coro, são os gritos de todas as damas vermelhas que foram queimadas nas fogueiras, todas as mulheres que, como Dickinson, tiveram a coragem de ter voz.
“Witchcraft was hung, in History,
But History and I
Find all the Witchcraft that we need
Around us, Every Day –”
[“Bloom upon the Mountain”]
Um tema em voz falada que conta com a colaboração de todos os músicos, mas também com a participação da artista visual Andrea Koesters. Quis que cada estrofe deste poema tivesse um sotaque diferente, porque somos todos de lugares diferentes. Os idiomas e a língua são organismos vivos, e são belos, cada um com o seu sotaque, com a sua maneira de pronunciar as palavras. Sendo este um álbum que se dedica muito à palavra falada, não podia deixar de ter um tema que explora as nuances do que é “dizer”. Acho importante falarmos dos sotaques, escutá-los e percebermos que eles são parte da cultura do mundo. A Andrea é do Kentucky, o Alex tem família do Texas, eu sou portuguesa, o Francis do Arizona… O tema ficou simples, exatamente como imaginei, mais uma vez sonoplastizado com os sons da natureza, com especial atenção aos coiotes.
[“De Bronze de Clarão”]
Uma das grandes referências para este disco é o álbum de Max Richter, The Blue Notebooks, com a participação de Tilda Swinton (outra enorme referência para o meu trabalho enquanto artista). Uma viagem por palavras em harmonia com as composições.
[“When Roses Cease to Bloom”]
O instrumental de abertura do disco aqui ganha palavras com este poema. Um navio que voa, que pede por orações e flores. “Flores e orações” podia ser perfeitamente o subtítulo deste disco, e este tema explica-o porquê. O cemitério de Auburn é subtilmente evocado nesta canção. Durante a estadia no Arizona, curiosamente, visitei o cemitério de Oracle quando terminámos a gravação do álbum. Ficámos em silêncio — o Alex, a Nico e eu — enquanto olhávamos a imensidão de terra que não tem fim… Em silêncio, fiz um agradecimento profundo a Emily, à natureza e às palavras.
[“Oráculo para Emily”]
Tenho memórias absolutamente bonitas da gravação deste tema. Queria muito uma espécie de sino que soasse como o início de “Vídeo Games” de Lana Del Rey. O Francis conseguiu encontrar um carrilhão no estúdio exatamente com o mesmo tom desse som inicial da canção de Lana, experimentámos várias vezes, e acabei por ser eu a gravar esse instrumento. Este é o tema final, escrito por mim a partir dos poemas originais e traduzidos, quis que soasse a uma espécie de reza de bruxa, que se parecesse a um feitiço bom cheio de palavras graciosas onde chamamos por Emily, onde rimos e a celebramos.