[O Chamado]
Em algum ponto do universo — talvez num asteróide em rotação, talvez no silêncio filtrado de um planeta adormecido — ergue-se um som. Não um som estrondoso, não uma melodia reconhecível, mas um murmúrio subterrâneo, um sussurro que ressoa como a primeira vibração num cosmos ainda por nascer.
É nesse limiar que Strata habita. Não é uma música que surge de um instrumento, mas um movimento que antecede a forma, uma pulsação que se propaga antes de se tornar matéria. A cada instante, a textura do som parece estar à beira de se desintegrar, oscilando entre a lembrança de um tempo passado e a antevisão de um futuro que ainda não chegou.
Joana Gama e Luís Fernandes não compõem melodias — decifram mensagens, sinais que emergem de um espaço entre mundos. A sua música não tem um início claro, não se curva à lógica da exposição e resolução. Em vez disso, abre-se como uma dobra no tempo, um fenómeno sonoro que se expande sem pressa, como uma onda gravitacional ecoando entre galáxias distantes.
[O Pulsar da Matéria Invisível]
Em Strata, os sons não são lançados ao acaso — cada frequência parece surgir de um código que se escreve sem palavras, uma matriz que oscila entre a precisão matemática e a imprevisibilidade do caos. Há momentos em que o piano emerge como uma estrela isolada, a brilhar numa órbita solitária. Mas depressa se dissolve numa nuvem de electrões dispersos, onde a electrónica se torna atmosfera, gravidade, sombra.
Esta não é uma música feita para guiar. Não há marcos, não há terra firme. A escuta é um salto para o vácuo, onde as coordenadas perdem significado e o corpo se desprende do peso da lógica. Cada faixa é um corredor de vento dentro de uma nave interdimensional, uma sequência de vibrações captadas no espaço-tempo.
Se há um centro gravitacional em Strata, ele não se revela de imediato. Está escondido na repetição de padrões que se desfazem antes de se tornarem reconhecíveis, na fusão de frequências que deixam de ser individuais para se tornarem um organismo único. O som não se oferece — insinua-se. O ouvinte não recebe — entra.
[Ecos de um Tempo Não-Humano]
O tempo em Strata não é humano. Não se mede em segundos, nem se organiza em compassos. Existe como um fluxo sem margens, um campo de forças onde cada tom, cada fragmento de som, parece reverberar para além da própria escuta.
Por vezes, a música aproxima-se do silêncio absoluto — um ponto onde a vibração se torna invisível e apenas o fantasma do som permanece. Noutras, cresce como uma tempestade sem epicentro, como um nevoeiro electrónico que cobre a paisagem sem nunca se fixar a um ponto.
Este não é um disco para ser ouvido com pressa. Não é um objecto sonoro de consumo imediato. É um convite para habitar outro espaço, outra dimensão da percepção. Como se, por um breve instante, nos fosse dada a possibilidade de escutar não apenas com os ouvidos, mas com a pele, com os ossos, com as memórias esquecidas de uma civilização que nunca existiu.
Joana Gama e Luís Fernandes não fazem música. Fazem tempo audível. Fazem do som um veículo para aquilo que, de outra forma, permaneceria oculto. Em Strata, não há respostas, apenas ecos. E na vastidão desse eco, cada ouvinte poderá encontrar uma forma de se perder.
[Joana Gama: O Piano Como Horizonte Infinito]
Do Silêncio à Matéria Sonora
Há pianistas que interpretam partituras, e há aqueles que fazem do piano um organismo vivo, uma superfície onde o tempo se dobra e o som se desdobra em ecos de infinitude. Joana Gama não toca apenas notas, escuta-as. E, nesse gesto de escuta, descobre mundos ocultos, paisagens adormecidas que só a paciência do silêncio sabe revelar.
O seu piano não pertence a um tempo específico, mas a um espaço onde todas as épocas convergem. Pode ser o murmúrio impressionista de Mompou, o ascetismo metafísico de Satie ou a cartografia meditativa de Hans Otte — em qualquer caso, Joana Gama não se limita a interpretar, ela traduz. Não apenas sons, mas estados de espírito, atmosferas, interstícios onde a música se torna uma linha suspensa entre o visível e o inaudível.
O silêncio, para ela, não é ausência, mas território. Há um instante antes do som e outro depois dele — e é nesse intervalo que se desenha o mistério. Quando toca “4’33”” de John Cage, não está apenas a performar uma peça, mas a moldar o vazio, a ensinar-nos que a música acontece tanto no que se escuta como no que se antecipa. Cada pausa tem um peso, cada ressonância uma história.
E as histórias multiplicam-se. No palco, nas colaborações, no cinema, na dança, no teatro, nos projectos para crianças. O piano é a raiz, mas os ramos expandem-se para todas as direcções. Da fisicalidade coreográfica de “Danza Ricercata” à imaterialidade dos sons para Lobo e Cão, a sua música não se encerra em si mesma, mas entrelaça-se com outras linguagens, outros corpos, outras formas de ver.
A relação com Luís Fernandes é um desses diálogos — a electrónica como extensão do piano, o acústico e o digital dissolvendo-se num mesmo sopro. Não há confronto, mas uma fusão líquida, um equilíbrio entre a organicidade da madeira e a imaterialidade do código. E depois há Ricardo Jacinto, o violoncelo como linha de sombra, a traçar contornos na paisagem sonora. Juntos, tecem uma música que não é apenas som, mas território.
Mas Joana Gama não se limita a tocar e a criar. Há também a arqueóloga, a investigadora, a guardiã de um património sonoro que precisa de ser escutado. Redescobre Hans Otte e traz O Livro dos Sons para Portugal, transforma Satie num ritual e Lopes-Graça numa viagem. O seu piano é um arquivo vivo, um laboratório onde a tradição não é um peso, mas um impulso.
A música é, para ela, um espaço de contemplação, um lugar onde o tempo se suspende e onde o som se dissolve no ar como um segredo partilhado. E assim continua, entre o quase-silêncio e a vibração plena, à procura daquele instante em que tudo se torna claro, ainda que por breves segundos.
[Luís Fernandes: O Som Como Arquitetura Invisível]
Cartografias do Vazio e da Matéria Sónica
Há músicos que esculpem o tempo e outros que o desmaterializam. Luís Fernandes constrói sobre o silêncio como um arquitecto que desenha estruturas invisíveis, levantando paisagens onde a electricidade se dissolve na luz. Se a música é um edifício sem paredes, ele é o engenheiro do intangível, traçando linhas de fuga entre o concreto e o etéreo.
Na vibrante tessitura sonora de Braga, cidade de ecos e de ruínas futuras, Fernandes ergue uma cartografia da escuta, onde cada som é um vestígio, um fragmento de um mapa desconhecido. Entre a pureza do piano e a síntese modular, entre a rigidez do código e a imprevisibilidade do erro, constrói pontes entre o digital e o orgânico, como se a electrónica fosse matéria viva e pulsante.
Dos primeiros voos com peixe:avião à vastidão cósmica de The Astroboy, da minúcia tectónica de Landforms à estranha geometria de La La La Ressonance, o seu percurso não é linear, mas rizomático. Cada projecto, um desdobramento. Cada colaboração, um nó numa rede de afinidades electivas. Com Joana Gama, desenha intersecções improváveis entre o piano e a electrónica, num jogo de sombras e transparências onde o ruído respira e o silêncio se adensa. Em trio com Ricardo Jacinto, o som torna-se um organismo que se expande, uma arquitetura movente que se inscreve no espaço.
O seu trabalho atravessa o cinema, a instalação, o pensamento curatorial. Não se limita a compor para imagens: dialoga com elas, desfragmenta-as, prolonga o seu tempo. No filme Mahjong, de João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata, a música é uma sombra sobre as ruas de Hong Kong, um sussurro a mover-se entre néons e silêncios. Em “Porto Poetic“, habita o espaço da arquitectura como um corpo ressonante, estendendo a memória sonora sobre o traço de Siza Vieira e Souto Moura.
Há também o gesto do curador, o olhar que escava territórios sonoros e os devolve ao mundo sob uma nova luz. No festival Semibreve, no gnration, Fernandes traça linhas invisíveis entre o passado e o futuro, cruzando a materialidade do som com a fluidez da imagem. Ao trazer para o seu espaço nomes como Phill Niblock, Mark Fell ou Ryoichi Kurokawa, não constrói apenas um programa: desenha um atlas de explorações sensoriais, onde o som se dilui em código, em vídeo, em névoa.
A obra de Luís Fernandes não é uma coleção de peças estanques, mas um fluxo. Há nela o rigor de um arquiteto sonoro e a intuição de um explorador. O que escutamos não são apenas composições, mas vestígios de uma cartografia em permanente mutação. Cada som, um fragmento. Cada fragmento, um mundo.
[A Matéria do Silêncio e do Ruído]
Sobre Joana Gama, Luís Fernandes e a Cartografia Sonora de Strata
A Geologia do Som
A música, por vezes, é como a terra: acumula-se em camadas, erode-se pelo tempo, revela-se em fissuras inesperadas. Strata, o mais recente disco de Joana Gama e Luís Fernandes, não é apenas um registo sonoro, mas um corte geológico na matéria do silêncio e do ruído. Aqui, o piano não é apenas piano, a electrónica não é apenas electrónica — são placas tectónicas que se deslocam sob os dedos, friccionam-se, moldam-se, deixam vestígios.
Há uma arqueologia no acto de escutar este disco. Grãos de som emergem como sedimentos dispersos, partículas de um tempo mineral que não se submete a narrativas óbvias. Strata não é um registo que se impõe, mas que se infiltra. Um álbum feito de estratos, de camadas sobrepostas, onde cada peça é um fragmento, uma deriva entre aquilo que é visível e aquilo que apenas se intui.
A Matéria do Silêncio
Se nos primeiros trabalhos do duo a música se desenhava num jogo dialógico — o piano e a electrónica como forças complementares, uma arquitetura de perguntas e respostas —, em Strata tudo se torna mais orgânico, mais sísmico. Não há contraponto, mas sim fusão. A música já não acontece entre os instrumentos, mas dentro deles.
A entrada de Joana Gama no universo dos sintetizadores reconfigura a paisagem. O piano, antes epicentro, torna-se apenas um dos elementos do solo que pisamos. O espaço sonoro expande-se, dilui-se entre frequências sintéticas e gravações de campo — sons capturados em lugares dispersos, ecos de geografias remotas que se tornam uma extensão dos próprios temas.
Em Strata, a música já não se organiza em blocos estanques, mas num fluxo contínuo, numa respiração profunda que se arrasta entre tons graves e agudos como se fossem ventos sobre a superfície de um planeta desabitado. O tempo dissolve-se, a estrutura fragmenta-se. O que escutamos não são peças, mas ecos de um monólogo interior.
A Substância da Memória
Cada faixa de Strata carrega um nome que remete para a linguagem geológica: “Graben”, “Inselberg”, “Geode” — palavras que falam de fracturas, de formações isoladas, de cavidades onde cristais se formam lentamente. Esta escolha não é acidental. A música de Joana Gama e Luís Fernandes sempre teve um carácter físico, quase topográfico. Mas aqui a relação com a paisagem torna-se literal — uma música que escava, que descobre, que revela estruturas ocultas sob a superfície.
Como um diário mineral, Strata documenta não apenas um percurso artístico, mas uma sedimentação de experiências. Dez anos depois da primeira colaboração, o duo regressa com um álbum que não é um fim, mas um novo começo. A coesão, a depuração, a escuta mútua transformaram-se num discurso interno, numa procura que já não precisa de validação externa.
Aqui, não há certezas nem respostas definitivas. Só o som a persistir, como rocha erodida pelo vento, como eco de um tempo que se esconde nas camadas mais profundas da escuta.
[A Música Depois do Horizonte]
O Som Como Fragmento de Um Futuro Esquecido
O Último Reflexo
Há discos que se escutam. Outros, como Strata, escutam-nos de volta. Depois de atravessar as suas atmosferas, depois de ser submergido nos seus fragmentos de luz e sombra, o ouvinte já não é o mesmo. Algo se deslocou — um pequeno desvio na percepção, uma nova forma de compreender o silêncio entre os sons.
Mas o que resta depois da última nota? Quando o som se dissolve no ar, quando a electrónica se apaga como a radiação residual de uma estrela morta, o que fica? O que nos persegue no instante em que a música termina? Talvez a única resposta possível esteja na própria natureza da escuta: o som nunca desaparece completamente, apenas se oculta na memória.
E Strata não é um disco que se apaga. É um vestígio, um fóssil de algo maior, algo que se perdeu no tempo e só pode ser reconstruído dentro de cada ouvinte.
A Distância Entre Dois Mundos
Ao longo da sua trajectória, Joana Gama e Luís Fernandes têm caminhado no limiar entre dois mundos — o acústico e o electrónico, o material e o etéreo, a construção e a erosão. Em Strata, essa fronteira não é apenas cruzada, mas dissolvida. Já não há um antes e um depois, um piano e uma máquina. Há apenas um sistema em equilíbrio instável, uma matéria sonora em suspensão.
E é nesse equilíbrio que reside a força deste disco. Em vez de impor uma narrativa, oferece possibilidades. Em vez de encerrar significados, abre espaços para que a escuta se torne um processo activo, um movimento contínuo entre reconhecimento e estranheza.
Escutar Strata é estar nesse espaço de transição — um corredor entre mundos, um eco de algo que tanto pode ser o passado longínquo como o início de um novo futuro.
A Música Depois do Fim
Depois de tudo, depois do último impulso eléctrico, depois da vibração final das cordas, fica apenas o que cada ouvinte carrega consigo. Mas a verdadeira questão não é o que fica — é o que se transforma.
Porque Strata não é um destino, mas um percurso. Não é um disco que se fecha, mas um portal que se abre para outras formas de escuta, para outras maneiras de pensar o som. É uma prova de que a música pode ser mais do que um objecto fixo — pode ser um organismo que respira, uma matéria em mutação, um espelho onde vemos não apenas a arte, mas a forma como a percepcionamos.
No final, Strata deixa-nos num território desconhecido. Não há certezas, não há um caminho marcado. Só a ressonância do que foi escutado e a possibilidade infinita do que ainda está por vir.