Seis anos e três álbuns depois, deu-se a estreia em palco entre nós do trio Enemy — formado pelo pianista Kit Downes, o contrabaixista Petter Eldh e o baterista James Maddren. Tão auspiciosa vinda foi programada no ciclo Jazz no Reservatório e teve lugar no topo do edifício do Museu do Porto, outrora cisterna de armazenamento para o abastecimento de água na cidade. Este ciclo de concertos no primeiro dos dois blocos da presente edição contou com a primeira entrada de uma formação estrangeira no cartaz. Hugo Carvalhais, compositor e contrabaixista convidado a programar o evento, aproveitou a oportunidade da melhor maneira e na janela que se abriu chamou um trio de músicos de enorme relevo ao altaneiro palco montado, que num final de tarde solarenga de Maio se torna como um lugar imbatível para este propósito. Haverá ainda um outro propósito, e estamos em missão disso nesta escrita, que faz pensar neste palco num (e como) ponto de abastecimento (musical).
Lançaram pela finlandesa We Jazz de Matti Nives no ano passado The Betrayal. Antes, em 2022 pela bávara ECM, lançaram Vermillion, onde ocultam Enemy, apresentando-se antes em nome dos três músicos, e tiveram a sua estreia discográfica, e apresentação, em 2018 como novo trio de piano, contrabaixo e bateria pela Edition com o homónimo Enemy. Mesmo sendo talvez uma das mais frequentes combinatórias instrumentais no jazz, onde desde piano, contrabaixo e bateria se aparenta pouco ou nada mais a acrescentar, quando o lugar é de mentes criativas de elevado calibre encontramos o campo da surpresa. Razão, quem sabe, para a audácia da escolha do nome do trio, em contraintuitivo efeito, aqui o inimigo não é temido senão bem antes ansiado.
A prova disso mesmo foi o concerto desse fim de tarde de 19 de Maio, que juntou um público disposto a dar a mente e os ouvidos ao inimigo. Aqui apresenta-se à vista de todos, num sitio altaneiro, à altura das copas das árvores, nada de trincheiras ou camuflados. Aqui nesta batalha convocam-se todos os canoros seres do paraíso em redor, galos e gaivotas, e mesmo aves mais exóticas passam a saudar o acontecimento, não se silenciam os cantos nem se espantam os pardais. Aqui ouve-se Enemy, música que se escuta em dias assim — especiais. Porque há no palco três dos mais imprescindíveis compositores da música do amanhã, que podemos ouvir já hoje. E porque é um dos presentes na plateia — Mané Fernandes, cuja música está e muito enraizada nesta linguagem e ideias que se escutam —, dele recordamos as palavras com que se referiu, em entrevista ao Rimas e Batidas, ao contrabaixista Eldh: “É uma referência. Acho que o pessoal está sleeping on him. O pessoal ainda não percebeu. A quantidade de músicos a quem eu falo sobre ele e me dizem, ‘quem?’ Ou só conhecem uma parte muito pequenina do trabalho dele, não conhecem o trabalho dele como produtor e compositor, que é onde a magia está a ser feita’. O apelido Eldh, que em sueco tão a propósito significa “fogo”, assenta que nem luvas no que produzem as mãos deste mago inovador da linha de tempo na música. Já dos ingleses do trio, Downes e Maddren, a critica e os prémios recebidos desde cedo lhes deram merecido lugar cimeiro, entre nomeações — Mercury Music Award e ECHO Jazz — à efectiva premiação pela BBC Jazz Award concedida a Downes em 2008 como estrela emergente. Como trio convergem toda as capacidades individuais que lhe assistem e vão além, capazes de desenhar os novos rumos do jazz nos temas compostos em disco ou, como foi o caso do concerto, em momentos de criação espontânea. Nisto mantendo uma ferocidade e ataque vital, energizante, em equilíbrio permanente intricado das vozes de cada um.
Aqui respondem musicalmente ao estímulo que a comida portuguesa lhes provocou e confessam a importância do pastel de nata nisso mesmo, logo no arranque de concerto, como alimento para o tema de improviso. Foi o momento de entrada na beleza da harmonia em redor, raios de sol, focos direcionados e galináceos a intervir. Um piano recém afinado e a soar cristalino em frases cíclicas em musculosas cascatas, numa punção a balanço que sulca incisivas linhas condutoras desde o contrabaixo, abrindo o sulco amplo para que a bateria se desdobre em ritmos quebrados em tantos outros mais e que produzem desvios constantes de interesse crescente. Pelo meio revistam o primeiro registo e trazem com entusiasmo, e em modo extenso, os temas “Jinn”, “Faster Than Light” e ainda “Children with Torches”, este último que relacionam com dedicatória aos canoros garnisés que se fazem ouvir e amiúde os fazem sorrir.
Podendo até sentir-se em modo de rever a matéria mais antiga, contudo sem perderem nisso a frescura inovadora que a sua música desponta, numa combinação de linguagem que assenta no modo de aparente repetição de ideias em que a cada passada se acrescentam desvios. São também estas as matrizes dos “beats” que, naquilo que a programação de maquinaria desvela na corrente do hip hop, aqui se serve nos trilhos do jazz e em modo totalmente orgânico. Uma clara evidência que pouco ou mesmo nada há a separar estas estéticas musicais, assim se queiram entender o muito mais que as une e lhes confere uma continuidade. Para isso contamos com Enemy (nesta batalha) com a música na linha da frente de Downes, Eldh e Maddren, escutando com atenção o que o “inimigo” tem para dizer.