pub

Fotografia: Ana Tavares
Publicado a: 28/02/2025

Um salto de maturidade.

Ela Caiu, mas os Marquise estão mais fortes que nunca

Fotografia: Ana Tavares
Publicado a: 28/02/2025

Os Marquise conquistaram algo notável em 2023: arrebataram a comunidade musical do nosso país com o seu EP homónimo de estreia. Não é, por isso, de todo, surpreendente que o entusiasmo pelo seu novo LP, Ela Caiu, que saiu hoje mesmo pela Saliva Diva, seja generalizado. Para os Marquise, é igualmente um marco: este seu primeiro álbum representa um caminho feito ao longo dos últimos dois anos de descoberta do seu som, e de si próprios. O resultado é verdadeiramente um álbum, e não um conjunto de músicas, que leva o ouvinte numa viagem que se define pelo contraste dentro dos seus espíritos, e que é, na sua essência, um exemplo a seguir de um trabalho artístico coming-of-age.

A sua história começa no Asa de Mosca, café da adolescência dos 4 membros da banda. “É um sítio para o qual gravitamos naturalmente. É o ponto de encontro”, revela-nos Mafalda Matos, vocalista do grupo. Foi através dos dias inteiros que lá passaram, “do género, almoçar lá, queijadinha ao lanche, jantar lá e ficar lá até à noite”, como especifica o guitarrista Miguel Pereira, que a sua amizade cresceu, e onde os primeiros contornos deste projeto se desenharam. 

Do Asa de Mosca partiram rumo ao Maus Hábitos, que é para a banda o local de um dos momentos mais importantes do seu percurso. “Foi aí que eu apanhei um bocadinho a dimensão da cena”, Miguel Pereira admite. Esse sentimento é explicado pelo salto que o concerto da banda na mítica sala do Porto no verão de 2023 (4 meses depois do lançamento do seu EP) representou naquela altura. Diante uma plateia lotadíssima, e com um atraso de “quase uma hora para o pessoal todo entrar”, como relembra o baterista Matias Ferreira, deu-se o grande statement of intent dos nortenhos. Momento esse que antecipava o resultado da sua passagem pelo Festival Emergente no final de 2023, a performance que verdadeiramente os apresentou ao país.

Agora, e depois de concertos no coreto do NOS Alive e no Sobe à Vila, warm-up do Vodafone Paredes de Coura, estão “mais perto de encontrar o rumo que querem seguir”, pelas palavras de Mafalda. Ela Caiu adiciona tanto ao imaginário da cidade que viu a banda crescer como ao do jovem adulto português, e demonstra que já não são a mesma banda que compôs “Acordei Mal” ou “Meninas Bonitas”. Mas não é por isso que olham para essa fase com menos apreço: “Eu vou sempre gostar imenso daquelas músicas [do EP] por causa de todo o processo de estar a tocar e dizer ‘e se fizesses isso’, ‘e se fizesses aquilo’, ‘bora experimentar isto’, os ‘pa-pa-ra-pa’s’ da Mafalda (no ‘Meninas Bonitas’), porque ela não sabia o que escrever para aquela parte da música então só se pôs para ali a trautear, e nós ‘ai, isso foi bué fixe’. Isso vai ficar sempre guardado na minha memória”, reflete Miguel Azevedo, baixista. De qualquer forma, Matias não considera que “estas músicas [do LP] sejam mega cerebrais”. Miguel Azevedo adiciona: “A única diferença é que já não mando um slap [no baixo]”. 

A verdade é que, tendo em conta o resultado final, isto é relativamente surpreendente. Falamos de um projeto em que não só as suas dez músicas trabalham juntas para criar uma atmosfera extremamente intensa e imersiva, mas em que também cada uma delas dialoga entre si. A banda aponta como fator para a coesão a que chegaram neste LP o trabalho feito nos estúdios da Arda Recorders, com o produtor João Brandão. “Foi um desafio quando estávamos a gravar o álbum nos Arda encaixar músicas que inicialmente, nas suas versões demo, eram músicas muito diferentes umas das outras. Acho que nessa parte temos de reconhecer o trabalho do João Brandão”, afirma Miguel Pereira. Igualmente, Matias diz-nos que o álbum é, de facto, “um objeto no seu todo”, mas que foi o processo de produção que lhe deu forma: “As músicas foram aparecendo, sem uma relação à priori entre si.”

É um álbum que pede alguma digestão, seja pela sua riqueza lírica ou pela sua profundidade sonora, outra das vantagens que a banda tirou da sua experiência nos estúdios da Arda. Poder usar “um amplificador diferente em todas as músicas” e “só usar a mesma tarola duas vezes”, como Miguel Pereira e Matias nos revelam, respetivamente, permitiu-lhes aprofundar a capacidade a nível de composição, estrutura e dinâmica que a banda já demonstrava em 2023. Há uma maturidade inerente em todo o projeto, e apesar do seu tom mais sombrio e menos “naïve”, como considera Mafalda, não perde a energia contagiante a que a banda já nos habituou, sendo essa, porém, contrastada com secções mais introspetivas.



Quatro cabeças alinhadas criaram então, de uma forma bastante natural, algo que é tanto deles como da sua geração. Refletem sobre o peso de uma vivência incerta no jovem que procura cumprir as suas aspirações, num mundo pouco misericordioso e que se altera a um ritmo estonteante. Nesse sentido, os dois singles que antecedem o álbum, e que são também as duas primeiras músicas no seu alinhamento, “Fauno” e “Passado”, introduzem as temáticas que estão presentes em toda a sua duração de uma forma perfeita. De um lado, a simplicidade da infância e da adolescência, em que todos sabemos o que queremos, representados na primeira música pela naturalidade e pacatez da paisagem rural e por Fauno, deus romano da floresta e do bosque, e na segunda por versos como “Porque é tão bom e não nos dizem”, acompanhados por riffs que nos colocam num lugar avassaladoramente nostálgico. Do outro, o desejo, esteja ele determinado ou a representar puramente a procura de uma identidade, envenenado por “pensamentos mundanos” que “se entrelaçam nas mãos”, como ouvimos em “Fauno”. “Nestes dois anos eu senti especialmente uma rotura naquilo que eu quero fazer, no que é que sou. Nunca tinha presenciado nem sentido certas coisas que senti nestes últimos anos, então também é uma espécie de primeiro contacto com muita coisa e quase como recomeçar do zero”, adianta Mafalda, que é também a letrista da banda. 

O seu trabalho lírico é imperativo para capturar a potência do LP, e mereceu sinceros elogios dos seus colegas: “Por mais que nós identifiquemos que há aqui um sentimento [no álbum], e às tantas estamos os quatro a senti-lo, quem to vai explicar é a Mafalda”, argumenta Matias. Efetivamente, a catarse de “Não Quero Ser” é atingida muito por culpa da poesia da vocalista e pela sua performance, testando os limites da sua voz. Igualmente, na melancolia de “De Alguém Hão de Ser”, a suavidade da voz de Mafalda atribui à faixa a sua emoção agridoce. 

Se essas já facilmente movem o ouvinte, “Cidade” hipnotiza: “Estudo arquitetura, e a ‘Cidade’ vem também muito daquilo que são as minhas leituras e da ideia de que um dia hei de construir e fazer coisas e eu não estou preparada [risos], de pressentir um declínio e que a cidade já tem tanta construção e que não precisa de mais”, reflete Mafalda. É através desta faixa que o Porto verdadeiramente se infiltra neste álbum. É-nos permitido olhar às raízes dos quatro músicos, onde procuram casa e vêem mudança, incerteza. Estão algures entre o entusiasmo da primeira secção da música e a constatação do refrão (“A cidade não pára”) e a decadência da segunda, que remete, aliás, para uma solidão muito própria da experiência do jovem adulto. 

Não é sequer no fim que encontramos closure. “Espanco de Espírito” é, talvez, a música mais esquizofrénica do LP, tanto saltitante como desesperante. Uma coisa torna-se clara após todo o contraste que coexiste no álbum, e o título indicia-o: como em qualquer peça coming-of-age, no final de contas é inevitável tornarmo-nos adultos. É curioso, no entanto, esta ter sido a primeira música que a banda compôs das presentes neste álbum. “Aliás, chegámos a pensar incluir essa música no EP”, adiciona Mafalda. Foi um acaso do destino ter acabado em Ela Caiu, mas fecha-o de forma belíssima. 

No final de contas, é um projeto de onde se podem tirar variadíssimas interpretações. “O que acho que é espetacular é que as pessoas têm ouvido o álbum e feito a sua conexão pessoal com ele de formas bastante diversas”, diz nos Miguel Pereira. Também não se deve entender de todo que a evolução que vemos no LP por parte da banda se destine apenas à mensagem: todo o álbum soa intencional, e a maturação de que o álbum beneficiou estes dois anos é visível neste. Há até parecenças com o trabalho de English Teacher, no contexto da comparação entre os seus EPs e LPs de estreia. Não é prudente insinuar que um grupo ainda bastante jovem seja comparável aos vencedores do Mercury Prize com This Could Be Texas em 2024, mas Ela Caiu não deixa de ser impressionante no contexto da música nacional.


pub

Últimos da categoria: Entrevistas

RBTV

Últimos artigos