O que testemunhámos com o lançamento de Limites é um fenómeno raro no hip hop, principalmente na era do digital. Isto porque, no caso de Each1, já são (ou eram…) “15 anos a andar nisto” sem um trabalho a solo completamente seu. Não é comum (e a tendência, por esta altura, é totalmente oposta) um rapper “andar nisto” tanto tempo, com tantas provas dadas, sem apresentar uma grande obra em nome próprio, que, apesar de tudo, teve a sua justificação com o desenrolar da sua carreira.
Desta feita, já conhecíamos o artista do Porto há algum tempo, desde a dupla que o formou no hip hop português, carimbada como Enigmacru, à natural afiliação aos Sexto Sentido; e por essa escola, que tanto representa como solidifica, já se fazia tarde esta estreia – não só para quem a fez, mas também para quem esperava pelo seu primeiro projecto de medidas largas. Assim, sozinho nos motivos, mas acompanhado nos meios, contou com alguns dos parceiros de sempre na feitura do seu primeiro disco, tais como Minus & MRDolly, Mundo Segundo, Beiro & Pedra, Paulinho e Tácio (membros dos ActivaSom), Reis, Chek1 (parceiro de Enigmacru), DJ Nel’Assassin, ou DJ Crava.
Essa curiosidade de o ouvir num longa-duração intensificou-se recentemente, no fim de 2020, com o desvendar d’As Aventuras do Lino, um conjunto de três temas de storytelling fictício, mas com verdade por trás, como, aliás, é tradição e costume no rap portuense. “Assumo o rap do Porto e não o tuga” – é esse o emblema que Rui Peres encosta ao peito, camisola que veste e não troca por nada. O Porto sempre foi um caso à parte no hip hop nacional, estático em valores e linguagens, mas permeável a uma natural evolução com o tempo. E mesmo sendo a introspecção o motor do rap do Douro, poucos são os discos lá feitos com tanta honestidade como este que nos trouxe aqui.
Numa altura em que imperam as representações, as interpretações, as sensações, as vibes, quer por artistas mais abstracionistas, que se abstêm de transmitir ideias à letra, quer por letristas de maior engenho, que tendencialmente se refugiam em alter-egos (como aconteceu com Lino e as suas aventuras) ou se revelam com filtragem prévia, a diferença que Each traz em Limites, face a todos os casos visados nessa dualidade maioritária de abordagens, vem precisamente pela ausência de filtros, o não privilegiar a harmonia estética em detrimento da franqueza humana na expressão de sentimentos em forma de música. Mais, a urgência e respectiva prioridade de tudo aquilo que tinha para dizer, ao fim de tantos anos, foi o que prevaleceu como razão de ser deste disco. Limites não foi feito porque faltava esse longa-duração a Each1; veio a ser construído nos últimos cinco anos e só viu a luz do dia – ainda que na escura Invicta – porque não poderia continuar mais tempo reprimido na escuridão.
“Mas foi tanta a distância que eu fiz a nado
Que se me puxarem p’ó barco eu já não subo”
A remar contra a maré, esta é uma causa de um só homem, apesar das esporádicas participações dentro de um círculo extremamente fechado, causa essa que não se prende com a eterna discussão do que é hip hop real. A sua pretensão também é essa, verdade seja dita, mas há um limite superior a esse que nos remete para a sua própria realidade. E dessa não tenhamos dúvidas: é mesmo real.
Por isso, e porque se trata exclusivamente da sua história, inequivocamente autobiográfica, desde problemas de ansiedade (que tiveram uma faixa assumidamente dedicada a este tema tão delicado) às relações pessoais e laborais, as frustrações de todas as vicissitudes decorrentes destas questões têm contornos bastante pessoais, como não poderia deixar de ser.
Procuramos no rap introspectivo rever as nossas experiências no papel de quem tão bem as descreve. No entanto, não é sobre esse papel que Each escreve, nem é esse o papel que assume. Estes são mesmo os seus limites, sirvam (ou não) a quem os absorver, caibam (ou não) em quem os encapuzar. Facilmente se sente essa distância, logo nas primeiras frases do álbum, que não pode ter aproximação forçada. Claro que as experiências são comuns e relacionáveis, não fôssemos todos seres humanos (mesmo os da pior espécie…); ainda assim, em momento algum deixamos de estar a assistir a uma história que não é a nossa, cujo narrador impõe no tom essa propriedade, seja a falar para si próprio, seja para quem o oiça (com sujeito indefinido nesta cláusula aberta).
Em termos de registos, não há grandes surpresas. Do drill ao boom bap, o MC não perde o fio à meada e agarra-se à mensagem, que se faz valer mais do que a forma ou o próprio mensageiro. Nessa forma também não há grandes mistérios; o poder da escrita de Each1 está no sumo que se espreme em cada verso, no que significa cada linha – não vale a pena procurar segundos sentidos escondidos em palavras ambíguas; está praticamente tudo explícito nas suas faixas, o que não invalida a substância e a qualidade notórias das suas rimas, escritas sem poupanças de caracteres, com premissas, por vezes, alongadas para sustentar as conclusões a que pretende chegar, ou simplesmente para não deixar nada por dizer. E não deixou – “Eu acredito que fazer arte… quando vais escrever um texto ou dizer aquilo que pensas deves dizer só aquilo que pensas sem as outras coisas influenciarem o teu caminho.”, já dizia, no ano de 2017, em conversa com o Rimas e Batidas sobre Emperfeito Equilíbrio (álbum de Enigmacru, editado em 2018), processo esse ao qual se manteve fiel neste disco primogénito:
“Se eu falasse, toda a gente diria que eu ‘tou doente
Ainda antes de eu ter acabado
E como duvido que isso me ajudasse, escrevo
Para quando alguém me julgar
Ser com a mínima noção daquilo que eu penso”
Por outro lado (e é importante não esquecer), este é um álbum de hip hop, do mais puro (e real; aqui não há dúvidas) que se pode conceber. E independentemente de toda a sua carga emocional, não deixa de ser apresentado como um compêndio de rimas e batidas apuradas, do início ao fim, e com momentos de intensidade elevada nestas habilidades, com destaque para “A Minha Hora”, com Tácio, sobre a exploração no trabalho; “Agimos Muito Rápido”, uma ode ao graffiti partilhada com o seu companheiro de armas Chek1; ou “Freestyle”, que se resume em seis minutos de barras incessantes – são exemplos de exercícios exímios de rap, a transbordar ritmo e poesia.
De resto, o tempo fará as suas contas e cuidará da merecida digestão deste disco. Contudo, não parece exagerado nem precipitado juntá-lo ao estrito role de projectos de rap portuense da última meia dúzia de anos que tiveram maior impacto, ao lado de trabalhos como KSX2016 de Keso, Caixa De Pandora de Fuse, Livro Aberto de Deau, ou Árvores, Pássaros & Almofadas de Minus & MRDolly, como alguns dos principais exemplos recentes da continuidade do legado desta geração intermédia (à excepção de Fuse) educada por Dealema e Mind da Gap.
Assim, Each1 esperou pela sua hora, sem, no entanto, estar parado, e conseguiu provar (a si próprio, acima de tudo) que causas queridas não são necessariamente causas perdidas. Quem espera sempre alcança? Errado. Quem procura sempre alcança sob pena de ficar estagnado e preso aos seus limites.