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Fotografia: Francis Wolff
Publicado a: 14/05/2020

Selo Cherry Red.

Donald Byrd And The Blackbyrds: a sofisticação e o bom gosto do jazz-funk

Fotografia: Francis Wolff
Publicado a: 14/05/2020

Há algumas semanas assinalou-se o primeiro meio século cumprido sobre a visão que Miles Davis ofereceu ao futuro com Bitches Brew, um álbum que ajudou a quebrar o (quase) cânone acústico do jazz, que impôs o estúdio não como mero palco de sessões, mas como laboratório de experiências e que reclamou para o campo da música de invenção livre e espontânea o músculo eléctrico do funk e do rock. Donald Byrd, um hard working hard bopper, com uma longa carreira que, de certa forma, funcionou como uma ponte entre duas eras, estava atento a esse mergulho no futuro.

Recuando até ao final dos anos 40, quando ainda era um adolescente, encontramo-lo a tocar com Lionel Hampton e, pouco depois, a integrar os Jazz Messengers comandados por Art Blakey, mas de meados dos anos 50 do século passado em diante, Byrd começou a impor uma voz própria como líder, ocupando de certa forma um espaço deixado em aberto com o desaparecimento de Clifford Jordan, e não deixando, ainda assim, de aceitar o convite para dar válidos contributos a sessões de gente tão distinta quanto Cal Tjader, Dexter Gordon, Eric Dolphy, Herbie Hancock ou Hank Mobley, para citar apenas alguns exemplos de uma longa lista em que se podem e devem ler sinais claros da sua competência e da generosa amplitude das suas ideias musicais. E seriam essas mesmas ideias que o levariam a apadrinhar os Blackbyrds (grupo de jazz-funk de Washington DC que estava para Byrd como os Headhunters para Herbie Hancock), a estabelecer uma relação de trabalho com os fabulosos irmãos Mizell (cuja clientela incluía um certo Michael Jackson) e, já na década de 90, ainda sob a inspiração de Miles (que haveria de gravar Doo Bop impulsionado pelo hip hop), a colaborar com o projecto Jazzmatazz de Guru, MC dos Gang Starr. De Lionel Hampton a Guru: extraordinário e amplo percurso, sinal evidente de alguém que recusava a imobilidade e o conforto das glórias passadas.

A novíssima compilação The Jazz Funk Collection, alinha em três CDs a música que Donald Byrd criou entre 1973 e 1982, após experiências exploratórias como as que realizou em álbuns como Fancy Free (já com assomos eléctricos e anterior a Bitches Brew), Electric Byrd e Ethiopian Knights, todos com selo da mesma Blue Note com que trabalharia até ao arranque dos anos 80 e para que registou os seus maiores clássicos dessa era, álbuns como Street Lady, Black Byrd (que à época se tornou no título mais vendido de sempre do catálogo desta histórica editora de jazz), Places and Spaces ou Stepping Into Tomorrow, qualquer um deles visto hoje como um superior clássico no campo do cruzamento – abertura? – do jazz aos mais avançados pulsares urbanos, do r&b, funk e disco sound.

O que não deixa, no entanto, de ser paradoxal é que a obra que Donald Byrd realizou nos anos 70 e que tanto o projectou no futuro (além de Guru, podemos pensar em Madlib, Jay Dee ou Erykah Badu como admiradores confessos da sua arte) foi à época desvalorizada pela intelligentsia jazz como mera música comercial: o New Grove Dictionary of Jazz descreve mesmo a sua produção nos seventies como “increasingly tasteless and shallow”.



Depois de ter investido boa parte das suas energias nos anos 60 num percurso académico que o levou a ingressar nos corpos docentes de algumas importantes universidades americanas, levando a sua vida de jazzman em relativa velocidade de cruzeiro, Donald Byrd haveria de voltar aos discos em força com a chegada dos anos 70, era em que recrutou os préstimos dos fabulosos irmãos Mizell (que trabalharam igualmente com Johnny Hammond e Gary Bartz além dos Jackson 5 e dos Miracles…), que assumiram a composição e a produção e que recrutariam para as sessões que dariam origem aos álbuns de Byrd desta era gente como Joe Sample ou Wilton Felder dos Crusaders e o todo poderoso baterista Harvey Mason dos Headhunters, entre outros membros da elite dos estúdios de LA e Nova Iorque.

Nesse contexto, Donald Byrd assinou uma série de impressionantes álbuns, carregados de grooves e sintonizados com as possibilidades tecnológicas oferecidas pelos estúdios, cheios de efeitos e sintetizadores que lhes conferiam um edge de aguda modernidade que os guardiões da verdade do jazz não encaixaram da melhor forma, quase sempre negando-lhes qualquer tipo de validade, mesmo à luz das experiências de fusão que então pareciam animar boa parte da produção jazzística mais moderna. Pode-se argumentar que Donald Byrd não deixou de ser um bom trompetista com a chegada dos anos 70 e que a sua música apenas ecoava as experiências ao nível do ritmo que se levavam a cabo nos terrenos do funk e até do disco sound. As vendas generosas hão-de, certamente, ter-lhe permitido ignorar essas vozes críticas. E a vibrante criatividade dos seus protegidos Blackbyrds, que beneficiaram igualmente do toque de midas de Larry Mizell e da sua Sky High Productions, há-de igualmente ter-lhe confirmado a visão: Roberta Flack, que assinou as notas de capa de Blackbyrds, o primeiro álbum do grupo lançado pela Fantasy em 1973, assegurava que “o nível de competência musical” aí aplicada era “bastante elevado e carregado de bom gosto”.

Em três CDs, bem anotados pelo colaborador da Mojo e Record Collector Charles Waring, alinha-se a grande música que Donald Byrd, os Blackbyrds e os irmãos Mizell entregaram ao futuro, música que deixou marcas na inspiração de gente como D’Angelo ou Thundercat, como Flying Lotus ou Madlib. Jazz que voltou a encontrar-se na pista de dança e que não temeu reduzir a invenção sem ainda assim comprometer a sofisticação e a elegância.

Esse também conta!


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