Há momentos que são inesquecíveis pela sua magia única e irrepetível, e que nos fazem lembrar o quão de belo pode haver nesta vida. O primeiro concerto que vi do Manu Chao na sua passagem em Portugal foi um deles. O dia era 13 de julho e esperava-se que o cantor francês de origem espanhola marcasse presença na Fortaleza de Valença, fazendo parte do alinhamento da terceira edição do Festival Contrasta, seguido da performance de Manel Cruz. À entrada da Fortaleza, avistava-se um cartaz dizendo o seguinte: “Valença – viver sem fronteiras”. Talvez uma pequena nota de rodapé para o que foi aquela noite, mas bastante simbólico para aquela que é a síntese da performance de Manu Chao naquela cidade. Estando apenas a 6 minutos de carro da pequena cidade de Tui que marca a fronteira para a entrada na Galiza, pelas ruas daquelas duas cidades ouvia-se com a mesma frequência o português ou o galego, e as matrículas dos carros dividiam-se entre aquelas que têm a letra E ou P debaixo da pequena bandeira da União Europeia na esquerda das chapas que identificam cada veículo.
Nascido e criado nos subúrbios de Paris, Manu Chao é filho de imigrantes espanhóis que procuraram em França um exílio por terem sido resistentes antifranquistas. A sua mãe Felisa Ortega, oriunda de Bilbau no país basco, e o pai, Ramón Chao, oriundo de Vilalba na Galiza. Manu cresceu imerso de um clima que transpirava a mescla de culturas: era hábito que, aos domingos, outros exilados de países da América Latina fizessem serão na casa de seus pais, e no seu bairro havia a presença de imigrantes oriundos de outras geografias como o Norte de África ou Portugal. Há quem lhe chame cidadão do mundo. O próprio disse em tempos preferir o termo “cidadão do momento presente”, pela noção de que casa é sempre o lugar do nosso aqui e agora.
Foi pelo gosto de géneros tão diversos como o rock, a salsa, a música norte-africana, ou o reggae, que surgiu Mano Negra, banda punk que Manu fundou com o seu irmão Antoine e o seu primo Santiago Casariego, que incorporava a fusão de todos estes sons que antes estariam cada um no seu gueto, e que lhe deu a possibilidade de conhecer melhor a América Latina, que seria determinante no seu percurso, e que, após o termino da banda, foi também o berço de inspiração para o seu primeiro álbum a solo, Clandestino, que lhe colocou na rota do sucesso com mais de 5 milhões de cópias vendidas, seguido do álbum Próxima Estación: Esperanza em 2001, Sibérie m’était contéee em 2004 e o La Radionalina em 2007. Passado todo este tempo, Manu Chao prepara-se para lançar um novo álbum Viva Tu, com data de lançamento prevista para 20 de setembro deste ano.
Um concerto de Manu Chao tem uma aura semelhante a um jogo de futebol em que a equipa ganhadora do início ao final do espetáculo é a humanidade. Sempre acompanhado de um sorriso genuíno e os braços para cima como quem marcou o golo da vitória, Manu Chao, no auge dos seus 63 anos, teve a proeza de energizar um público ao êxtase, num concerto em que o tom de energia e alegria aumentava a cada música, surpreendendo sempre pelo profissionalismo tanto na percussão como nas guitarras e pela forma como cada momento era vivido a 200%. Fazendo também misturas entre vários dos seus hits mais conhecidos, foram vários os clássicos que passaram pelos ouvidos do público: desde “Mentira”, “Me llaman calle”, a homenagem a Diego Maradona com “La vida tombola”, ou “Welcome to Tijuana”, “Desaparecido”, entre outras.
Sendo profundamente humano e poético nas histórias contadas através das suas músicas, Manu Chao criou um cancioneiro que atravessa quaisquer fronteiras ou linhas geográficas, transmitindo uma noção de universalidade naqueles que são os valores mais bonitos que podem ser vividos em comunhão: o amor, a alegria, a liberdade. E é por isso que foi de uma forma certeira e simples, que as palavras “contra la matanza en Palestina” naturalmente se fizeram ecoar, envoltas numa maré tocante, pelo estado de ebulição sonora que se fazia sentir no concerto e o estado de êxtase do público. Antes, durante e após a performance de “Clandestino”, uma das suas músicas mais conhecida, que conta uma história de uma pessoa que teve que sair do seu país para procurar uma vida melhor, Manu Chao fez questão de relembrar que “Ninguém é ilegal”, homenageando os afogados em Gibraltar e as suas famílias.
O posicionamento político no trabalho de Manu Chao tem sido recorrente. O próprio, em tempos, recusou qualquer tipo de etiquetas ou uma noção de fazer música engajada. Afirma-se como um cidadão preocupado com o que vê no mundo, e a forma como faz a sua arte e leva a sua vida é uma consequência desse mesmo posicionamento. Exemplos disso são a participação em manifestações contra a reunião do G8, ou até a sua associação à fundação Playing for Change. No entanto, esse posicionamento é especialmente relevante na forma simples como vive a sua vida, sendo uma pessoa mais interessada em conhecer a cultura de bairro e artistas que estejam no underground. Em entrevistas antigas falava sobre a estranheza que era para alguns o simples facto de ele andar de metro e não possuir um carro. No entanto, o mais simbólico é a forma como o próprio tem decidido o tipo de concertos que tem dado e com que critérios.
Quando se envia uma proposta de booking para concertos para o e-mail no site de Manu Chao, a resposta automática vem com um conjunto de coisas a saber sobre a proposta. Entre algumas das mais comuns — como a data, o sítio ou a capacidade do recinto — vêm perguntas como: “Principais patrocinadores?”, “Que tipo de patrocinadores são?”, “Preço dos bilhetes?”, “Preço das cervejas, águas e refrigerantes?”. É por isto que não é de admirar que na sua passagem em Portugal, Manu Chao tenha recusado tocar no Paredes de Coura, no Super Bock Super Rock ou no Primavera Sound. Não só os espetáculos de Manu Chao são bons, como são acessíveis. O preço do Festival Contrasta em Valença era de 15 euros, e a cerveja de 1,5€. O Festival agitágueda tinha entrada livre. O Festival do Maio, onde tive a oportunidade de ver Manu Chao pela segunda vez, também. O preço da cerveja? 1 euro.
Eram 19h15 da tarde do dia 19 de julho, e à volta do parque enchia-se uma fila enorme de pessoas com a expectativa de poder entrar no recinto, já que a admissão era limitada à lotação do mesmo. O concerto começava às 21h. Num ambiente algo parecido a uma Festa do Avante, o Parque Urbano do Seixal ia-se enchendo de um clã de fãs que faziam parecer com que aquele fosse o festival de Manu Chao. O calor humano era muito e a alegria, outra vez, imensa. Sendo um concerto em geral igual no alinhamento ao que teria visto no Norte, não deixou de surpreender novamente a atmosfera criada durante a performance, sendo que houve algo de especial que marcou aquela noite. Na tela ao lado do palco em que se podia ver em melhor detalhe os planos da banda, ou do público, havia uma bandeira da Palestina sempre a pairar num dos planos, desde o início ao fim do concerto, vendo-se à frente Manu Chao. Após ter cantado “Je ne t’aime plus”, este apelou à “Paz na Palestina” enquanto abanou um pouco mais tarde um keffiyeh –— o lenço que simboliza a resistência palestiniana. No público, viam-se muitos mais a ser abanados, enquanto outras bandeiras se levantavam, criando-se uma euforia em torno daquelas palavras e daquela causa. Logo de seguida, o próprio iria buscar a bandeira palestiniana que agitou aos saltos enquanto a atmosfera de amor, alegria, liberdade e loucura ecoavam no ar.
Num mundo em que o clima político e social consegue ser tão pesado, triste e revoltante para tantos, felizmente existem pontos de luz como Manu Chao. Não só dá um gozo enorme poder disfrutar de concertos bons como estes, como é profundamente revolucionário abrirem-se espaços de ebulição em que tudo o que existe é liberdade, amor e luta por um mundo melhor. Não deixa de ser curioso e bonito que Manu Chao tenha sido a pessoa que mais vezes vi a agradecer ao público, nomeando as terras onde passou. Ainda me ecoam nos ouvidos a quantidade de vezes que gritou: “Valença maluca! Valença doida!” Ou quando agradeceu ao Seixal pela força, a energia, e a paciência. Enquanto os holofotes estavam virados para o NOS Alive e o Super Bock Super Rock, Manu Chao tocava em Valença e no Seixal, respetivamente, provando que a grandeza não está em figurar nos grandes festivais ou encher mais os bolsos, mas no amor que se propaga. Próxima Estácion? Esperanza. Obrigada.
*As fotografias utilizadas nesta reportagem são todas referentes ao espectáculo que decorreu no Seixal, no âmbito do Festival do Maio.