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Fotografia: Knut Åserud
Publicado a: 25/07/2024

Em antecipação da estreia do músico norueguês e o seu trio em Portugal no Loulé Jazz'24.

Daniel Herskedal: “Trata-se de pôr a música à frente do instrumento”

Fotografia: Knut Åserud
Publicado a: 25/07/2024

O som amplo e profundo das grandes paisagens norueguesas de mar e neve, vindo da tuba e trompete baixo do músico e compositor Daniel Herskedal em trio, está prestes a fazer a sua primeira passagem entre nós, nas quentes noites do sul. Virão actuar e fechar o Loulé Jazz’24 no próximo domingo, dia 28 de Julho.

O mais longevo festival de música do Algarve chega à 28º edição e volta a contar com a curadoria de Mário Laginha. No dia 26 (sexta-feira) sobem ao palco dois quartetos, o do guitarrista Ricardo Pinheiro com Andy Sheppard como convidado, e o baterista Mário Costa com o premiado Chromosome. Dia 27 (sábado) é o jazz no feminino que estará em palco com o quinteto da baterista Maria Carvalho celebrando com “Margem” a música e as palavras eternizadas de José Mario Branco, e depois a saxofonista tenor da Blue Note Melissa Aldana em quarteto. A fechar o ciclo dia 28 (domingo) antes do Daniel Herksdall Trio estarão em palco o Trio Jazz de Loulé com os convidados Sara Badalo na voz e João Palma no acordião. Três calorosas noites de jazz na alcaidaria do castelo de Loulé.

Em modo de antevisão da estreia do trio norueguês entrevistámos o músico, compositor e descritor de paisagens que é Daniel Herskedal. Uma voz imprescindível, desde as terras do longínquo norte, prestes a viajar até nós para se ouvir bem mais de perto, como tanto importa.



Talvez possamos começar pelo que é mais importante reconhecer. És uma das vozes de metais mais importantes da cena jazzística escandinava e europeia. Comunicar com um par de instrumentos poderosos com tons profundos e ressonantes, como são a tuba e o trompete baixo, é simultaneamente invulgar e vibrante. Que músico e compositor é este na primeira pessoa?

Sou de uma pequena cidade costeira, mas também uma importante cidade de festivais de jazz, Molde, na Noruega. Aqui aprendi tanto a música clássica como o jazz desde a minha juventude. Quando estudei música em Trondheim e Copenhaga, senti cada vez mais uma forte necessidade de me exprimir de outras formas que não as habituais para um instrumentista de metais, e também diferentes das tradições clássicas e do jazz. Comecei a explorar a música dos Balcãs, a música árabe e a música Saami, entre outras. Tradições muito diferentes, mas com o facto de terem desenvolvido música que sobreviveu ao tempo e que é imediatamente reconhecível, o que considero serem qualidades muito fortes. Para poder tocar música de uma forma razoável com os meus instrumentos, fui forçado a desenvolver novas técnicas e a compreender como os meus instrumentos podem soar. A minha escolha de instrumentos foi, naturalmente, muito importante e inspiradora nos meus anos de juventude, mas ultimamente vejo-a mais como uma ferramenta para exprimir a música que quero. Não é assim tão importante o instrumento que toco, agora vejo-o mais como a minha ferramenta e como posso soar e que tipo de paisagens sonoras e atmosferas musicais posso criar com ele. 

Claro, e agora temos o privilégio de ter e ouvir entre nós, em Portugal, onde também existe o som inventivo de outro grande tubista, o Sérgio Carolino. Isso dá-nos uma certa familiaridade com este registo da música jazz. Imagino que já o tenhas conhecido, ou mesmo o seu trabalho. O seu trio TGB é uma grande cena…

Sim, o Sérgio é uma estrela mundial entre os músicos de metais (e todos os outros que conhecem a sua música). É também um pioneiro no desenvolvimento de novas formas de tocar — muito poucos têm capacidades técnicas como ele, se é que têm alguma. Conheci-o há alguns anos quando tocou num concerto na Noruega com algumas lendas clássicas de cá, e mantivemos contacto desde então. Ele também é muito compreensivo e continua a motivar-me e a motivar o meu trabalho. 

Vais estrear-te em trio nos palcos portugueses dentro de poucos dias, no Loulé Jazz. Estamos ansiosos por isso, mas também um pouco surpreendidos: como é que às vezes estas estreias demoram tanto tempo a acontecer? Será por acaso ou muito pelo facto de estarmos na periferia das rotas mais estabelecidas do circuito internacional de concertos de jazz?

É quase a minha primeira vez em Portugal! Fiz um concerto com o meu projecto a solo no Teatro Tivoli, em Lisboa, em 2022. Foi uma óptima experiência e levou a muitas novas marcações na Europa. Mas com o meu trio é a estreia em Portugal. É difícil dizer exatamente porque é que demora mais tempo nuns países do que noutros. Penso que o intercâmbio cultural não é o mais frequente entre a Noruega e Portugal (exceto para o bacalhau e o Helge Norbakken). O Helge, o baterista do meu trio, tocou muito com a Maria João e o Mário Laginha, e é a principal razão pela qual o meu trio está a ser convidado. O meu principal mercado como músico ao vivo tem sido, à exceção da Noruega, a Europa Central e, ultimamente, também a Europa de Leste. Como músico de estúdio, compositor e co-autor, o Reino Unido e os EUA têm sido mais importantes. Não sei exatamente porque é que é assim, mas o que sei com certeza é que isto está sempre a mudar. Espero que agora seja a altura de conhecer melhor o público português. Já estive cá algumas vezes como turista e adorei o ambiente, a gastronomia e o vinho, e não me importava de vir mais vezes como músico também. 

O que é mais impressionante na tua música e, consequentemente, na tua abordagem à tuba, é que num instrumento de que se esperaria que servisse o tempo, acabas por fazer muito mais a definição da melodia. Ou melhor, fazes as duas coisas ao mesmo tempo, o que é realmente impressionante. É uma técnica que estás a desenvolver ou é mais uma necessidade funcional de ter as duas coisas numa só?

Trata-se do facto de eu achar a forma tradicional de tocar os meus instrumentos um pouco aborrecida a longo prazo, e também de nem sempre gostar de tocar a música que se esperava de mim devido ao meu instrumento. Mas continuava a querer fazer música, e gostava muito de tradições musicais sem tuba. Isto forçou-me a desenvolver novas técnicas, novas formas de ser um solista, novas formas de criar orquestra-solo completa com várias camadas (o que faço no meu projeto a solo, Call For Winter). Penso que se trata de pôr a música à frente do instrumento. Mas ainda assim, foi extremamente importante fazer a educação musical que fiz, é preciso aprender corretamente as bases do instrumento para ter a possibilidade de o desenvolver nas direcções que fiz e que continuarei a fazer. Em suma, trata-se de criar mundos musicais que parecem honestos e que soam bem. 

Ouvir a tua música é muitas vezes, literalmente, ouvir a voz humana a falar através de um instrumento. O que resulta, em grande medida, numa poética musical. Há outro músico norueguês, Henrik Nørstebø, que utiliza técnicas de vocalização extensivas, neste caso no trombone. Há algum segredo a revelar ou uma experiência de aprendizagem da educação musical na Noruega no que respeita à instrumentação de metais? É algo cultural?

No meu caso, tem a ver com o tipo de música que aprendi e como a traduzi para os meus instrumentos e a desenvolvi para que soasse como uma forma natural de tocar. Por exemplo, nos últimos anos tenho tocado muito com um joiker Saami. Esta tradição é normalmente a capella, por vezes com tambores. Por isso, não há nenhuma tradição de instrumentos harmónicos ou melódicos ligados a ela que conheçamos. Mas não deixa de ser uma tradição muito atractiva, com a qual aprendi muito. Penso que noutras culturas — por exemplo, na música árabe — os vocalistas e os instrumentistas estão mais ligados — fraseiam e ornamentam de forma semelhante na sua música tradicional, o que considero muito atrativo e inspirador. Dito isto, vejo-me como um pequeno ramo na árvore genealógica dos grandes trompetistas nórdicos Palle Mikkelborg, Nils Petter Molvær e Arve Henriksen — aprendi muito ouvindo-os. 

Na tua carreira a solo, estás num processo muito marcante com estes dois discos — Call For Winter. O primeiro já foi editado e o segundo está para sair muito em breve [ambos via Edition Records]. São o resultado de gravações em isolamento numa cabana nas montanhas da Noruega. Dá a ideia de que há algo de Walden de Thoreau. É um processo criativo fascinante. Podes falar-nos mais sobre ele?

Quando tenho encomendas ou outros processos criativos, gosto de sair da minha rotina diária e ir para algum lugar para me concentrar a 100% numa tarefa criativa. Neste caso, isolei-me numa cabana nas montanhas com o meu estúdio portátil e os meus instrumentos. Tanto a composição como as gravações foram feitas na cabana. Quando faço isto, sinto-me menos perturbado e concentro-me mais. Posso trabalhar dia e noite — estou sempre concentrado no projeto quando estou acordado, mas também faz parte dos meus sonhos quando durmo e é a primeira coisa em que penso quando acordo. Dou por mim numa espécie de mundo musical-psicadélico em que começo a tornar-me uno com a música. É nessa altura que consigo ir mais fundo na minha arte e criar a música mais honesta. E quando a natureza lá fora é completamente branca, bonita, mas também dramática, isso, claro, afecta a minha mente e a forma como posso expressar paz e emoções através da música.

Claro, é a voz solitária, o íntimo de Herskdal a olhar para o espaço à sua volta. E é disso que trata a tua música, a vastidão, o espaço aberto, amplo e livre. A tua voz acaba por ser a mesma em solo e num trio, ou há um Daniel diferente quando acompanhado em palco por outros músicos?

Já tenho idade suficiente para ser eu próprio em qualquer projeto em que participe, mas é claro que os músicos que me rodeiam me afectam em palco. No programa a solo que fazemos, normalmente em som imersivo, podemos criar tanto mundos musicais íntimos como enormes, com a interação com o meu engenheiro de som Ingo Rau. Isso também podemos criar no meu trio, e a contribuição e a inspiração que recebo do Eyolf e do Helge durante um concerto faz-me reagir de forma diferente em cada concerto. No projeto a solo, preencho todo o concerto sozinho, o que me faz tocar de formas mais variadas. No trio, estamos sempre a trocar de papéis em relação a quem toca a melodia, quem é o baixista, etc., pelo que a experiência, tanto para mim como para o público, será bastante diferente, apesar de continuar a ser eu em ambos os projectos. 

Vens tocar com o teu trio, com Eyolf Dale ao piano e Helge Anders Norbakken na bateria, como referes. Editaram o álbum Harbour em 2021. É o trio mais duradouro da tua carreira de compositor. Existe um processo autoral colaborativo neste trio?

Sim, fazemos 10 anos de banda em digressão no próximo ano e vamos lançar o nosso quinto álbum. Pedi-lhes para se juntarem a mim no primeiro álbum porque adoro o que eles fazem com a música. Felizmente, eles quiseram continuar a trabalhar comigo e aqui estamos nós. Normalmente escrevo a música, mas deixo as composições abertas à personalidade e criatividade deles. Não foi a um pianista e a um baterista que pedi que se juntassem a mim, foi ao Eyolf e ao Helge, e é extremamente importante para mim que eles possam ser eles próprios a 100% quando tocam a minha música, e que se sintam donos da música e da banda devido ao seu contributo e abordagem à música. 

Em Harbour, logo nos títulos das canções, há uma ligação muito presente ao mar e à costa, em que “The Mariner’s Cross”, “The Lighthouse On The Horizon” e “Like a Ship In The Harbour” são exemplos disso. É um álbum concetual, com esse mote, ou o mar e a arte de navegar fazem parte de ti?

Para mim, é uma história contínua em todos os nossos álbuns — Slow Eastbound Train, The Roc, Voyage e Harbour. Em comum estão as viagens e a natureza, o estar em movimento. E cada vez mais o foco está no mar. Sou do litoral e o mar sempre foi importante e inspirador para mim. O mais especial em Harbour foi o facto de ter sido composto e gravado em 2020, e nessa altura eu não tinha a certeza (mas ainda tinha esperança e acreditava [nisso mesmo] na maior parte do tempo!), se continuava a minha carreira musical durante e depois do COVID-19. O álbum foi um processo de sobrevivência musical muito importante, tanto para mim como para o trio. 

Ainda a propósito do mar e com algo que tem muito a ver com ele, na costa sul da Europa, às portas do Mediterrâneo. Tens uma canção chamada “The Beaches of Lesbos” que evoca uma grande tragédia que, infelizmente, ainda está em curso — a crise humanitária dos migrantes e das travessias marítimas. Este é também o lugar em que a vossa música é importante, para denunciar e chamar a atenção. Todos nós temos essa responsabilidade, certo?

Sim, todos temos de contribuir da forma que pudermos. A minha forma de contribuir é sobretudo através da música. Tive a sorte de fazer digressões na Síria, no Líbano e na Palestina quando ainda era possível, e fiz amigos e aprendi muito sobre música enquanto lá estive. Outro álbum importante para mim neste tópico é Behind The Wall [música para trio de oboé, violoncelo e piano], que dediquei ao povo de Ramallah. Foi composto em 2015 e lançado em 2019 [pela Naxos]. Até agora, este é o meu único álbum em que compus mas não toquei. 

Existem também, entre outros, temas sobre histórias de barcos e portos. Que expectativas tens para este concerto, de alguém que está mais habituado a olhar para o Mar do Norte e vem agora tocar com vista para o Atlântico às portas do Mediterrâneo?

Se o bacalhau consegue, nós também conseguimos! Brincadeiras à parte, adoro o facto de haver uma grande tradição de exportação de bacalhau da minha terra, a Noruega, para Portugal. Isto faz parte do meu fascínio pelo mar e pelos tempos em que o mar era a forma mais rápida de viajar. Esta será a minha primeira vez nesta zona de Portugal e estou muito entusiasmado com a experiência. Também estou muito ansioso por viver o festival e conhecer o público. As minhas expectativas e as da banda são muito altas em todos os sentidos, incluindo as expectativas de fazer o público feliz. E esperamos, em conjunto com o público, criar uma noite de música diferente da que eles normalmente experimentam, mas também bonita e cheia de energia. Estamos ansiosos por isso e vamos dar o nosso melhor!


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