LP / CD / Cassete / Digital

Danger Mouse & Black Thought

Cheat Codes

BMG / 2022

Texto de Alexandre Ribeiro

Publicado a: 19/10/2022

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Estávamos em 2014 e Jimmy Fallon, anfitrião do The Tonight Show, apresentava a banda que todas as noites o acompanhava, os The Roots, antes desta mostrar um dos temas, “Never”, daquele que era então o seu novo álbum, …and then you shoot your cousin. A canção já era inquietante no contexto do disco (culpa de Patty Crash, da Metropolis Ensemble e das escolhas estéticas de ?uestlove e companhia que remetiam para uma era em que o trip-hop era linguagem corrente), mas naquele estúdio, com aquela cenografia a dar contexto, tudo ficou mais claro (literalmente) e, de certa forma, sinistro. Na frente, durante algum tempo, Tariq Trotter manteve-se de mãos nos bolsos, impávido, agitando de maneira quase imperceptível a cabeça enquanto esperava pela sua entrada, o que só acontece mal chegamos aos dois minutos do vídeo. Em 55 segundos, o rapper de Filadélfia não largou o beat com um assustador sangue-frio e debitou texto como se vivesse há anos dentro do groove daquela faixa em particular, sugando todo o ar da sala até ao momento em que voltou a fechar-se em copas. Fim de cena. 

Corta para 2022. Que ligação existe entre esse momento e Cheat Codes? Em termos instrumentais, “Aquamarine” e “Saltwater” (a espaços) são as únicas faixas que apontam directamente para as mesmas coordenadas sonoras do lugar onde se fizeram Dummy e Protection – a cidade de Bristol é, mais do que uma localização física, um estado de espírito implantado na memória colectiva através da música. E não é só aí que encontramos uma ligação: tal como nessa aparição na televisão, Black Thought voltou a ceder o controlo, preocupando-se mais em desempenhar o papel que Danger Mouse lhe deu – a voz, a caneta e o tempo são suas garantias para assumir o protagonismo. 

Nesta fase, a sensação é que o produtor já nos deu um pouco de tudo: álbuns colaborativos com rappers (Ghetto Pop Life, THE MOUSE & THE MASK), vocalistas (Lux Prima, St. Elsewhere, Broken Bells) ou compositores italianos (Rome); um disco, The Grey Album, em que combinou elementos do longa-duração homónimo de 1968 dos Beatles com as rimas de Jay-Z no The Black Album; remisturou “It Ain’t Hard To Tell”, cruzando NAS e Portishead em mais um momento de magia; e produziu projectos dos Gorillaz, Black Keys, Norah Jones, Beck, U2, Michael Kiwanuka, Red Hot Chilli Peppers e Parquet Courts. Antes de ser este “rato perigoso”, o seu alter-ego artístico era Pelican City, lançando dois trabalhos, The Chilling Effect e Rhode Island. Desde o início, a sua assinatura musical, aquilo que o distingue dos outros e o coloca numa qualquer lista de produtores com um desempenho notável em diferentes campos nos últimos 20 anos, passou por algo tão “simples” como isto: uma busca incessante por um som altamente evocativo e cinematográfico que é capaz de definir o tom/estado de espírito no primeiro momento – é como se fôssemos transportados de imediato para um qualquer cenário mal a canção começa. Quando se cruza Ennio Morricone (“Crazy” é, segundo o próprio Brian Burton, um ripoff do som do compositor italiano), Portishead (a sua ligação com Cee-Lo Green deve-se a um amor partilhado pela banda britânica) e uma paixão por rap o resultado não poderá ser outro quando se projecta e executa música. 

É muito interessante olhar para o percurso e o catálogo que o MC americano foi criando: de “Super Lyrical” com Big Pun (1994) a “Few Good Things” com Saba (2022), passando por todos os trabalhos que fez com os The Roots ou aqueles que lançou a solo no pós-freestyle épico no programa de Funk Flex, e sem esquecer a presença constante na televisão (“Black Thought opening for Jimmy Fallon every night is the cultural equivalent of Miles Davis playing his horn on the subway platform to back up a semi-trained dancing spider monkey” foi uma das reacções de alguns desconfiados…), nada beliscou o seu estatuto. É como se, espante-se, tivesse realmente os Cheat Codes para conseguir que as pessoas separassem o artista profundo, informado e altamente talentoso do entertainer de talk show. Não é para todos. 

Por diferentes motivos, a peça central deste Cheat Codes é “Belize”: está literalmente no meio do alinhamento – é a sexta faixa de doze; é uma rara colaboração de Thought com DOOM (“Mad Nice” era o único exemplar até aqui); o instrumental é, provavelmente, o melhor exemplo da tal capacidade de DM em recriar o som que uma banda de library music que ouve os The Beatles e os The Doors e é produzida executivamente por Westside Gunn tentaria alcançar; os versos do membro dos The Roots e do vilão mascarado mais famoso do rap (que infelizmente já não se encontra entre nós) contêm pérolas não só na forma como são transmitidos como naquilo que, obviamente, dizem. 

(…)

“And I can prove it to the way me and DOOM do this
You checking the top-two of a thousand intelligent chaps
With rap projects in housing developments”

(…)

“Fuck a thick skin, I got me a exoskeleton
The black Colin Farrell in The Lobster
Deliver like an obstetrician, but not a doctor
Bring the Cambridge, the Websters, the Oxfords
The picture too long to watch, see the synopsis
Compensated for playing nice, it’s optics
Product of The Last Poets and The Watts Prophets”

(…)

“Danger make him groove off a glitch
Made your boo booty twitch and the crew rich, bitch
Always wanted to say that

(…)

“Just keep it on a need-to-know basis
They knew he was a negro, so no need to show faces
Back in the days of no laces
On a slow pace, they used to say he might could go places”

O videoclipe acrescenta mais uma camada à canção e outra igualmente significativa à ideia anteriormente explorada do actor Thought e do realizador Mouse – o primeiro vai sendo capturado pela câmara do segundo, que aparece na sombra (literalmente) até que Daniel Dumile rouba o espectáculo e obriga-o a pousar a máquina para, lado a lado com o seu protagonista, assistir a um actor secundário a fazer uma performance de outro mundo (quase literalmente, se nos permitirem). 

No capítulo dos convidados, que são muitos, os convites não foram feitos de forma aleatória, conseguindo-se detectar em muitos deles a tal postura de quem teve os cheat codes na mão para navegar uma indústria que não tem fama de ser misericordiosa. Raekwon (que aparece ao lado de Kid Sister em “The Darkest Part”) com os seus Wu-Tang Clan e um plano engenhoso de RZA fizeram-se figuras reverenciadas e com catálogos (em grupo e a solo) que impõem respeito a qualquer geração; Conway The Machine (em “Saltwater”) pode ter aprendido qualquer coisa com os veteranos e a sua Griselda tomou – e ainda toma – conta do rap que vem de baixo para contaminar tudo em cima; os Run The Jewels (com A$AP Rocky em “Strangers”) construíram um império a partir de uma ideia simples: unir duas mentes criativas incríveis (mas diferentes entre si) num só projecto. 

Não havia melhor altura para termos este longa-duração terminado e colocado no mundo. Depois de trilhar com sucesso os caminhos do rap e do rock, Danger Mouse encontrou as ferramentas necessárias para definir uma estética de autor (exemplo: a maneira como misturou a voz no álbum é de uma sensibilidade impressionante) e providenciou da melhor forma Black Thought, que se mostrou, mais uma vez, astuto e assertivo como poucos em 2022, escrevendo e debitando sobre o mundo que o rodeia e como se insere nele com a experiência de quem viu e viveu muito. Passem algum tempo com estes quarentões e o seu Cheat Codes e terão lições que farão sentido agora, amanhã e daqui a 50 anos.


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