“I need some water
Somethin’ came over me
Way too high to simmer down
Might as well overheat
Too close to comfort
As blood rush my favorite vein”
“LUST.”
[TEXTO] Alexandre Ribeiro [FOTO] Direitos Reservados
O novo álbum de Kendrick Lamar saiu há dois dias e meio mundo continua a dissecá-lo incessantemente. O peso mediático do artista de Compton está mais alto do que nunca e “HUMBLE.”, o único single que saiu antes de DAMN., apontava para novos caminhos que nos deixavam famintos por mais.
Desde o lançamento que se discute a qualidade do disco, mas não só: as comparações com Joey Bada$$, as críticas precoces — o The Guardian e o Telegraph deram cinco estrelas a DAMN. — , a velocidade de pensamento, a unanimidade à volta de K-Dot, as teorias incrivelmente credíveis de que um novo álbum chega amanhã… Bem, a Internet parece estar em sobreaquecimento e parece não existir um consenso. No entanto, uma coisa é certa: a arte pede ângulos diferentes e debate fervoroso e é isso que estamos a ter.
Neste momento, o rapper da TDE é um nome transversal que pede exige um lugar ao lado de lendas como Prince, David Bowie, Bob Dylan, Jimi Hendrix, Michael Jackson, The Beatles, Led Zeppelin ou Pink Floyd. Alguém que pega numa herança pesada para modificar, renovar e trazer cenários novos para a mesa. Percebe o passado e o presente para criar um futuro que outros não conseguem enxergar.
Sem hits óbvios, DAMN. é a terceira pedrada num charco que não tinha um dono tão declarado há muitos anos. Fiquem com a análise faixa a faixa:
[“BLOOD.”]
“Is it wickedness?/ Is it weakness?/ You decide/ Are we gonna live or die?”
A primeira canção é a introdução perfeita para nos preparar para o álbum e fala sobre uma das temáticas mais recorrentes de Kendrick: a dualidade. A morte nas mãos de uma mulher cega é a história contada pelo MC e, numa primeira leitura, uma analogia à evidente ignorância e racismo que continua a ser perpetrada nos Estados Unidos da América, ainda mais clara desde a nomeação de Donald Trump para a presidência. O sample de George Rivera só ajuda na interpretação: a cegueira é demasiado grande…
[“DNA.”]
“Tell me when destruction gonna be my fate/ Gonna be your fate, gonna be our faith/ Peace to the world, let it rotate/ Sex, money, murder—our DNA”
Primeira bomba logo na segunda faixa. Mike Will Made-It ofereceu uma estrutura sónica cinzenta e carregada de graves para K-Dot declarar-se “black and proud“. A mudança no beat para o segundo verso torna o ambiente abrasivo e irrespirável — faz lembrar “Look At Me” de XXXTentacion — , mas o rapper, sabe-se lá como, sai vivo e a deixar a mira apontada a todos enquanto desfila técnica.
[“YAH.”]
“I’m not a politician, I’m not ‘bout a religion/ I’m a Israelite, don’t call me Black no mo’/ That word is only a color, it ain’t facts no mo‘”
Mal começa “YAH.”, a primeira pessoa que me surge na cabeça é ProfJam. A vibe do instrumental e a entrega lânguida de K-Dot remetem para Mixtakes. Uma viagem por caminhos esotéricos com Kung Fu Kenny e referências bíblicas atrás de referências bíblicas.
[“ELEMENT.”]
“Years in the makin’, and don’t y’all mistake it/ I got ‘em by a landslide, we talkin’ about races/ You know this’ll never be a tie, just look at their laces/ You know careers take off, just gotta be patient”
Nota-se James Blake à distância em “ELEMENT.”. Mal entram as drums, Kendrick ziguezagueia entre adversários num ritmo bounce que desagua sempre num dos melhores refrões do disco: “If I gotta slap a pussy-ass nigga, I’ma make it look sexy/ If I gotta go hard on a bitch, I’ma make it look sexy/ I pull up, hop out, air out, made it look sexy/ They won’t take me out my element/ Nah, take me out my element“.
[“FEEL.”]
“I feel like the whole world want me to pray for ‘em/ But who the fuck prayin’ for me?”
Beat caloroso de Sounwave com baixo tocado por Thundercat a pedir vinil e o rapper da TDE a mostrar o porquê de ser um dos melhores a nível técnico. Sem misericórdia, Kendrick pede que rezem por ele e expõe-se numa das canções mais sinceras do disco. Ao fazê-lo, toca num ponto muito importante: quem é que olha por ti quando chegas ao topo da cadeia?
[“LOYALTY.” FEAT. RIHANNA]
“Tell me who you loyal to/ Is it money? Is it fame? Is it weed? Is it drink?/ Is it comin’ down with the loud pipes and the rain?”
Os anos passam e Rihanna vai ficando cada vez mais suportável — ANTI é um grande disco de 2016, diga-se. “LOYALTY.” é a faixa mais radio friendly, mas não deixa de estar recheada de versos para reflectir sobre a quem escolhemos dever lealdade. Destaque também para o instrumental a citar abundantamente o som do g-funk e da West Coast.
[“PRIDE.”]
“Love’s gonna get you killed/ But pride’s gonna be the death of you and you and me”
Steve Lacy, o prodígio de 18 anos que faz parte da banda The Internet, cria em “PRIDE.” o ambiente dreamy perfeito para os devaneios musicais de Kendrick. Mais um exemplo de que a música nunca se adapta ao rapper, mas sim o contrário: o rapper navega por qualquer mar com mestria, só ao alcance dos maiores.
[“HUMBLE.”]
“This shit way too crazy, ayy, you do not amaze me, ayy/ I blew cool from AC, ayy, Obama just paged me, ayy/ I don’t fabricate it, ayy, most of y’all be fakin’, ayy”
Depois da beleza e contemplação de “PRIDE.”, “HUMBLE.” é a faixa punk deste disco. O produtor de “Black Beatles” novamente a tomar conta da arquitectura sónica e a deixar-nos a abanar a cabeça de forma ostensiva com o piano que guia K-Dot por toda a faixa.
[“LUST.”]
“We all woke up, tryna tune to the daily news/ Lookin’ for confirmation, hopin’ election wasn’t true/ All of us worried, all of us buried, and our feeling’s deep/ None of us married to his proposal, make us feel cheap”
DJ Dahi, Sounwave e BadBadNotGood na produção é garantia de magia e instrumental inventivo. Expectativas cumpridas e Lamar a descrever a vida de uma super-estrela enquanto exibe um flow meloso que exige pausa e concentração.
[“LOVE.” FEAT. ZACARI]
“Remember Gardena, I took the studio camera/ I know Top will be mad at me/ I had to do it, I want your body, your music/ I bought the big one to prove it”
And now for something completely different: Zacari a ajudar Kendrick a escrever uma carta de amor para, supomos nós, a mulher. Para quando um álbum de baladas, K-Dot?
[“XXX.” FEAT. U2]
“Ain’t no Black Power when your baby killed by a coward”
A música mais surpreendente do álbum. Bono cheio de soul no refrão da segunda parte de “XXX.” e o preacher K-Dot a tentar guiar o país entre os escombros deixados por Donald Trump.
[“FEAR.”]
“Within fourteen tracks, carried out over wax/ Searchin’ for resolutions until somebody get back”
Grande beat de The Alchemist a servir uma narrativa elaborada em três partes por Kendrick Lamar. Nas mãos do rapper, é difícil ficar aborrecido e as diferentes perspectivas colocam-nos a mexer no “filme”. Mais um exemplo da capacidade cinematográfica de K-Dot.
[“GOD.”]
“I’m sellin’ verses, Jay Z, watch me work it, JT”
Deus é importante na obra de Kendrick Lamar, sem dúvida, mas a maior beleza na forma como o utiliza é que nunca o vende facilmente ou seja, apresenta visões ambivalentes da sua “presença na nossa vida”. Em “GOD.”, o rapper cita abundamente Drake — More Life anda a rodar na casa de K-Dot? — e apresenta, mais uma vez, a sua visão sobre ter chegado ao topo.
[DUCKWORTH.]
“Pray with the hooligans, shadows all in the dark/ Fellowship with demons and relatives, I’m a star/ Life is one funny mothafucka/ A true comedian, you gotta love him, you gotta trust him”
“DUCKWORTH.” é a pérola mais brilhante de DAMN.. Storytelling de alto gabarito conjugado com três beats de 9th Wonder transformados num só — magia de Kendrick Lamar, contou o produtor. Quatro minutos e pouco de sobressaltos, revelações e tesouros escondidos numa narrativa que liga K-Dot, o seu pai e Anthony “Top Dawg” Tiffith. Um grande filme tem que ter um grande final, certo?