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CAVALA

épico normal

Edição de autor / 2024

Texto de Ricardo Vicente Paredes

Publicado a: 06/03/2025

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Cada vez que um colectivo de mulheres edita música em nome próprio, fazendo-se ouvir mais alto, o mundo deveria agradecer. Das seminais The Slits, às The Raincoats, na efervescência punk inglesa, houve impulsos do fazer feminino diante da música saturada de testosterona. A exemplo, as Le Tigre ou as Savages mantiveram-se com igual chama nessa esteira. Actualmente, e já por cá, a formação de umas imprescindíveis Lantana, trouxe lufadas de ar fresco aos campos da música improvisada e exploratória. Demonstração plena que as autorias musicais no feminino não se esgotam nem anicham nos campos das guitarras eléctricas, baixo e bateria. Mas tal ideia só seria possível fazendo esquecer a herança na arte dos sons e das palavras de umas Adufeiras de Monsanto, ou das Cantadeiras do Campo do Gerês, onde cabem em adição as COBRACORAL ou as Sopa de Pedra, surgidas em tempos mais recentes. 

Serve isto de introdução à música colectiva de CAVALA, surgidas no Porto de onde melhor se definem como “marisco pós-pandémico”. Formadas por Helena Carneiro (bateria), Inês Barbosa (korg, guitarra, flauta e voz), Madlen Wuest Pinto (guitarra, korg, baixo e voz), Maria Cabral (baixo e voz) e Mariana Amorim (ukulele, melódica, pífaro e voz). São um quinteto de quatro vozes na práctica disposto a dizer, até mais que cantar, as palavras que importam escutar e em grande medida vindas da caneta da baterista Helena. O ano passado apresentaram um conjunto de sete temas editados em nome próprio, a que muito apropriadamente resolveram denominar de épico normal. É épico, porque continua a ser um momento de acção heróica, volvendo-as heroínas no meio. É normal, porque afinal o que o que trazem é natural, juntarem-se e fazerem música como forma de expressão. 

E esta música ouve-se nos desígnios da atitude punk, crua e directa, mas onde cabem serpentinas e brilhantes como adornos essenciais. Numa motivação avant-garde, fazem-se afirmar, cantando em modo declamatório a denúncia de “Alfabeto Fomético” onde se ouve: “Épico, normal, natural / Foi sempre assim, e assim será / Gargarejam os doutores / Hienas de dentes branquíssimos / Impressionam o pobre podre de dores”. Ressaltam ecos das intervenções de uma aventura chamada Mler Ife Dada, de Anabela Duarte e Nuno Rebelo. Mas também há uma voz latente de Ana Deus e das outras duas de Três Tristes Tigres. São referências de validação de todo normais, mas sem retirar o épico momento de pertença a CAVALA. Apenas e só por que hoje já ninguém vem de nenhures ou vai por aí sem saber para onde vai. Acrescem nesse mesmo tema adiante: “Range o dente, olha pelo canto, bebe de um trago / Sabe mal, mas podia ser pior / Trabalhinho que não falte e / Um carro para mandar vir, carago”, fica dito ao que vêem. Bem-vindas sejam! 

Mas há letras de épico normal que se apanham por aí, numas sessões poéticas parlamentares, transpostas no parodiante tema em que se transforma “Valores grossos”. Uma “lírica” repescada dos depoimentos prestados por ilustres figuras aquando das comissões de inquérito da Assembleia da República do Novo Banco. Poetas há muitos, alguns nem consciência disso têm. O importante, também, aqui não é o voo, é antes o modo como se cai. “Que eu me recorde, não / sinceramente não me recordo / não, não sei / isto é o que eu me recordo”, rematam em grosso modo, cheias de valor sobre a teia narrativa em modo teatralizado. 

Helena, Inês, Madlen, Maria e Mariana estão aí, dispostas a contar-nos as fraquezas das forças enquanto tocam com a força que se impõe perante as fraquezas do dia-a-dia, tal como assumem em “Anel”, tema-confissão, do interior, em que todas são um eu de cada uma. 

épico normal é um primeiro rasgo feito compromisso de um colectivo, grito até, de uma imagem que a capa escolhida bem ilustra. Esse mergulho nas águas do quotidiano, rasas até, mas como uma passagem em desejo para uma fenda, para um provir de melhor. A música e arte — em exercício, pelo menos — trazem esse meio de fuga até mais perto, mesmo que momentâneo.


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