A intensidade dos dias vividos leva a que a esta jornada — a derradeira — a emoção esteja em permanente aflorar, quer nas conversas, a cada passo dado, quer quando se senta o corpo para receber o concerto que vem e surgem as primeiras ondas sonoras. É, no fundo, o cair do pano e a ameaça permanente de fim de uma bolha dentro da qual o mundo é um lugar ideal. Assumir esta vulnerabilidade é tornar as defesas, que nos fazem mais fortes do que na realidade somos, portas de entrada mais escancaradas na vez de portões blindados que o amanhã lá fora convoca.
Há um programa para viver, e vamos a ele que afinal isto ainda não acabou. Marcámos encontro com o inesperado, na plateia com o palco, no palco e no palco com a plateia. Afinal, é esta uma das maiores premissas de programação do Causa|Efeito — os diálogos entre a experimentação, a improvisação e a criatividade no contexto jazzístico. As três numa só é o que se imagina no que chama de imediato à atenção pela beleza singular na instrumentação de palco — marimba e harpa, instrumentos que neste contexto, e sobretudo lado-a-lado, se tornam primeira vez. Dos instrumentistas, e espera-se dialogantes improvisadores neste palco, Pedro Carneiro (marimba) e Eduardo Raon (harpa) são donos de conhecidas trajectórias bem relevantes e que abriram caminho para imaginar este primeiro encontro. Mas são percursos que foram explorados no seio da linguagem da música contemporânea abstracta. Refira-se o percussionista Carneiro como sendo, até hoje, o único músico português com o nome inscrito, como solista em dois ensembles distintos, no catálogo da gigante ECM. O harpista Raon, radicado em Liubliana, é porventura de nome menos sonante neste campo, mas foi um dos membros do experimentalismo pop dos Hipnótica de João Branco Kyron. O corresponde brilhantismo de carácter inovador da sua harpa encontra-se registado, em estreia a solo, em On The Drive For Impulsive Actions, editado pela irreverente Shhpuma de Travassos em 2013. A este registo a solo acrescente-se outro fundamental da sua discografia e que o revela, num diálogo entre o mistério e a revelação, junto ao pianista Wolfgan Schlögl (aka I-Wolf) com quem grava Baumgarten, em 2020, para a austríaca Seayou. A premier do Causa|Efeito talvez tenha ficado para uns quantos aquém do efeito que a junção de palco potenciava. Raon foi a lanterna que iluminou o caminho, com bravura inovadora, capaz de revelar um campo sonoro desde a harpa que a espaços cruzava uma experimentação que ouvimos no Habitat de Angélica Salvi. Acabando mesmo até por se ouvirem cetáceos a responderem nas cordas, sempre encantadoras, da harpa. Carneiro, por outra, seguiu em grande parte do diálogo uma mais preventiva harmonia do que ia recebendo de Raon, tocando com amparo e suavidade e em alguns outros toques exibindo outras potencialidades do grande som amortecido das peças de madeira. Um concerto que, ao arrancar com uma lâmina de madeira modelada às mãos do harpista enquanto na marimba se desenhavam linhas a arco de violoncelo, fazia imaginar o tanto do que ficou por ouvir. Foi antes mais um assobio planar, literalmente escutado como recurso sonoro entre os dois mais no final, numa inédita junção de palco.
Outro ponto de escuta possível é a música feita no outro milénio e que as partituras fazem cristalizar, que de tão inovadora se volta a escutar com redobrado prazer hoje, passado um tempo, que não faz moça alguma a um duo de saxofone alto e contrabaixo. Dois “velhos” amigos que se reencontram para tocar, Tim Berne e Michael Formanek, este último agora radicado em Lisboa, tornando este voltar acrescido de um sentido de visita em ca(u)sa própria. Cruzaram-se para tocar em 1991 e depois disso fizeram das suas vozes registos incontornáveis quando hoje se olha para trás para ouvir e contar a história do jazz criativo vindo do outro lado do oceano. Mas as suas inconformáveis personalidades musicais fazem-nos arriscar o novo, mergulhando na música um do outro mas num desconhecido duo. A exemplo servem “A Fine Mess”, tema escrito por Formanek e registado em Time Like This com o seu Elusion Quartet, com Tony Malaby no saxofone, Kris Davis no piano e Ches Smith na bateria. Smith que, neste propósito, foi como que um elo de ligação espiritual em palco, já que em seguida tocam “Soften The Blow” de Sun Of Goldfinger que Berne gravou com David Torn na guitarra, Smith na bateria e Craig Taborn no piano. Mas ali foram tão só e tanto as vozes melódicas e criativas do saxofone e do contrabaixo, ligadas em absoluta mestria envolvente. Dois contadores de histórias, e bem recentes, juntos desde um longo passado demonstrando bem que se reafirma num criativo presente.
O sonho que Eve Risser, compositora francesa, assumida e destemida pianista feminista, teve um dia com a obra “Après un Rêve” de Gabriel Fauré, estava ali para ser retomado, na última cenografia de palco do Causa|Efeito. Este sonho, que se traduz num acordar após sonhar, retomando a ideia no nome dado por Fauré há cerca de 150 anos, num despegar enamorado, num voo rumo à luz, no retomar da centelha do sonho. Risser tem feito ocasionais e sempre especiais apresentações performativas desde 2018 e que deixou gravadas para a Clean Feed em Après Un Rêve, com uma ilustração onírica, de uma cascata de velatura sonora ilustrada por Risser e que é uma das capas preferidas do editor (e programador deste festival) Pedro Costa. Aqui Risser está sentada no placo ao piano vertical, mas de costas e junto à primeira fila configura-a na primeira linha da plateia, de costas ao publico mas de frente para a música como todos nós. Todos e todas olhamos para o mesmo, um piano amparado pela luzes no feminino, como a música que se ouve, numa cadência maquinal, onde o movimento dos martelos nas cordas preparadas faz uma coreografia que apetece acompanhar dançando. É uma transição dos elementos de fraseados que se retomam em ondas recorrentes, onde de sobremaneira se incorporam desvios de ressaltos de mecanismos interactivos entre pianista e as cordas, numa desenvoltura dinâmica. Passa por elementos de música mecanique, mas cujo embolo é humano e não autómato; passa por voltas que a electrónica tem como base, contudo contando com impulsos somente vindos dos pulsos de Risser e alcança o ímpeto do techno — para tal tem um bombo de pé adjacente. Há uma fluidez orgânica entrecruzada com o mecânico, numa ode ao modernismo maquinário e veloz, ao futurismo. O piano é escutado como um todo e é o derradeiro instrumento precursor maquinal em ritmos de percussão de relógios de corda sobrepostos pela melodia faureana, em equações de múltiplas variáveis, tantas quantas as que queiramos deixar pôr em evidência. Poderia ter perdurado pela noite adentro, num transe… Acaba numa ovação de uma plateia toda ela a imaginar abraçar a destemida feminista que acaba por dedicar a prestação à menstruação que, confessa, tem o dom de aparecer nos dias que tem concertos a solo, para o bem e para o mal que isso acarreta. Exausta, mas de uma emoção tão vulnerável como idílica. Não somos máquinas — e ainda bem.