Arrancou ontem a segunda edição do Jazz no Reservatório, um evento organizado pela Ágora que conta com produção da Associação Cultural Figura Fonética e que decorre no Museu da Cidade do Porto, instalado num antigo reservatório de água, no Parque da Pasteleira.
O ponto alto desta primeira jornada foi, obviamente, o concerto do quarteto liderado por Carlos Bica. O contrabaixista fez-se acompanhar por Eduardo Cardinho no vibrafone, José Soares no saxofone e Gonçalo Neto na guitarra — ou seja, um veterano rodeado de jovens leões, uma quadratura que resultou numa apresentação de mais de hora e meia em que a música atravessou, sobretudo, tranquilas, poéticas e algo cinemáticas paisagens, antes de ganhar ímpeto rítmico e fulgor abrasivo na recta final. Numa das suas intervenções, Bica fez saber que o quarteto já gravou e que o resultado dessa passagem por estúdio — as sessões, percebemos depois, decorreram nos Arda Recorders e tiveram supervisão técnica de Nelson Carvalho — deverá ver a luz do dia já no próximo mês de Junho com selo da etiqueta Clean Feed. Tendo em conta o que uma preenchida plateia ontem escutou, essa será uma muito bem vinda edição.
Os concertos deste Jazz no Reservatório deverão sempre ter lugar no terraço do dito cujo, espaço privilegiado para a fruição desta música, mas as condições atmosféricas obrigaram a que esta apresentação do Carlos Bica Quarteto fosse movida para dentro de portas, facto que apenas favoreceu o carácter intimista da performance.
As composições — várias delas assinadas pelo guitarrista Gonçalo Neto e nalguns casos em estreita colaboração com o líder Bica — viajam sobretudo pelo espectro mais planante, calmo, poético e, como já mencionado, cinemático da música, com vincados traços de folk, country e blues a fazerem lembrar a espaços alguns registos de Ry Cooder ou Bill Frisell. Mas isso são apenas impressões de um ouvido “deformado”, já que personalidade é coisa que não falta tanto às melodias quanto aos arranjos e à sua execução: Neto parte da sua Gibson Flying V, quase sempre sem “filtros”, mas pontualmente esculpida por subtil pedaleira, incluindo alguma poeira electrónica, para dela extrair apontamentos melódicos de enorme requinte e de óbvia espessura técnica; o vibrafone de Cardinho é uma cascata harmónica de enorme frescura e beleza em que o resto dos músicos se banham, tocado com mallets que funcionam como autênticos pincéis com que pinta murais de grande riqueza cromática ou com um expressivo arco com que literalmente faz as lâminas cantarem — há mesmo uma dimensão “coral” nesta música que, paradoxalmente, vive sem vozes; e José Soares é a autêntica personificação da coolness, um saxofonista que grita com a mesma tranquilidade com que sussurra, que segreda com a mesma ferocidade com que clama — todo ele nervo, mas todo ele também pura elegância.
O mestre é, claro, o mestre a que os outros músicos respondem com deferência, mas nunca abdicando das respectivas personalidades: o lado mais free de Soares não se disfarça e os assomos mais rock de Neto são exibidos com orgulho. E tudo funciona.
No final, o pulso acelerou um pouco, com grooves de inspiração turca ou balanços bluesy a arrancarem efusivos aplausos de uma plateia que se rendeu, que encaixou as passagens mais contemplativas e se deixou arrastar pelo caudal mais intenso da parte final da apresentação. Esta música está viva, vibra e faz vibrar, e ressoa de maneira especial quando, talvez por sugestão das garnizés que no exterior sinalizam o lusco-fusco, de repente transformam a sala dos arcos do museu num descampado amplo onde todos e todas são convidados a repousar. Música que transporta merece sempre forte aplauso. E o público que ontem ali acorreu em número generoso não poupou a banda no final, recompensando Bica e companheiros com uma generosa ovação.
Hoje, o programa prossegue com o trio Enemy de Kit Downes, Petter Eldh e James Maddren. O tempo parece estar de feição, por isso o exterior deverá ser opção.
Declaração de interesse: antes do concerto do final de tarde, o signatário destas linhas orientou uma conversa com o programador do evento, Hugo Carvalhais, sobre Improvisação e Inteligência Artificial. Em breve, um resumo dessa conversa será por aqui publicado.