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Fotografia: Jhalin Knowles
Publicado a: 05/06/2024

Um reforço de Leonardo Pereira aos discos de hip hop que ficaram pelo caminho.

Burburinho: Maio 2024

Fotografia: Jhalin Knowles
Publicado a: 05/06/2024

Em Burburinho, Leonardo Pereira olha pelo retrovisor e oferece destaque aos discos — muitas vezes não tão óbvios — que mais o marcaram ao longo do mês anterior, com especial enfoque para tudo aquilo que se vai colhendo nos campos do hip hop. Sem restrições ao nível da estética, por aqui vão cruzar-se propostas que vão desde o mais clássico boom bap às cadências soulful que aproximam o género do r&b, não esquecendo nunca as reformulações mais modernas do som nascido em Nova Iorque, que hoje gera infindáveis ecos a partir de qualquer cidade à volta do globo através das visões gélidas do trap ou do drill.


[Slum Village] F.U.N.

A contínua construção dos Slum Village será um dos fenómenos do hip hop que mais tomamos como garantido. Originalmente composto por J Dilla, Baatin e T3, o grupo foi evoluindo depois das mortes infortunas dos primeiros dois músicos mencionados, com o terceiro a continuar a segurar a tocha, primeiro com Elzhi e depois com Illa J. De momento, Young RJ compõe a outra metade do duo atual e produz todos os grooves para as rimas suaves como seda do inconfundível detroitiano. F.U.N. é o primeiro álbum de estúdio de Slum Village em pouco menos de dez anos e os veteranos soam mais que confortáveis em terem voltado ao seu habitat natural. Convidando artistas para todas as faixas do disco, assume-se uma vontade de percorrerem as sonoridades mais sensuais do disco e do funk, com instrumentação acústica a encher as batidas de RJ de uma vivacidade e de uma materialidade quase palpável. Esta intenção, completada com uma pontaria milimétrica, elimina qualquer dúvida que possam ter criado sobre os Slum Village, que nunca deixaram de corporizar todos os sentimentos mais ébrios e sensações mais eróticas possíveis no hip hop. Brittney Carter abre o disco com um timbre sério mas orgulhoso, a apresentar-se a si e ao disco que estamos prestes a ouvir, montando a cena para um hip hop old school que transpira atitude, confiança e coolness. Abstract Orchestra, Sango, Phat Kat, Daru Jones, Karriem Riggins, Larry June, The Dramatics, Cordae (e a lista continua) vão escrevendo como coautores a história dos Slum Village e mostram todas as maneiras possíveis de como se sua swag do mais puro.


[21 Lil Harold] Sick of Myself

Membro fundador do Slaughter Gang, editora da qual o membro mais prominente será 21 Savage, 21 Lil Harold tem cativado uma audiência crescente desde o seu primeiro projeto, o EP Keep It 21, de 2020. O seu hip hop segue a linha de trap de Atlanta que se enraizou na cultura na última década, mas sentimos um cheiro peculiar e bastante recorrente neste disco ao boom bap e a muitas das suas características definidoras: “Pipe Dreams” usa o seu loop fundacional orgulhosamente, o que faz com que os tripletes da percussão se destoem completamente da gravidade quase confrontacional a que estamos habituados neste género; a sample vocal obstinada de “Sundown” enche a canção de alma, especialmente quando Harold rima acontecimentos de cada ano da sua vida pós-adolescente — o verso de JID é um dos momentos mais altos do disco; “One in the Head”, com Quavo e G Herbo, representa esta mistura de géneros e influências perfeitamente — se o “Migo” cospe na sua flow mais habitual, quase metralhada, Herbo leva o seu tempo e enuncia cada sílaba de todas as ameaças e todas as vaidades que proclama. Esta edição ouve-se a correr — são 22 minutos de música — mas só dá vontade de repetir, sem ficar enjoado.


[Jawnino] 40

Os antepassados da música eletrónica do Reino Unido continuam-se a sentir nos sistemas venosos de praticamente qualquer música que saia das ilhas. Jawnino, personagem enigmática que surge pela primeira vez em material editado no final da década passada — anónimo tal como CASisDEAD ou M Huncho —, tem formado círculos com figuras inevitáveis da música inglesa contemporânea: conhece Babydoom em 2015, Skepta em 2016 e é convidado por Blackhaine em 2023 para tocar num set de Playboi Carti. De momento, faz parte dos coletivos NTN e Negropop Yakuza, assumindo-se como parte da nova era de um novo hip hop, um que se associa ao dream pop e ao cloud rap, um que esconde as vozes e as caras em favor de mostrar e contar as suas histórias e as suas mágoas.

Já lá vão uns anitos de mistério para o rapper do sul de Londres, mas finalmente chega-nos o seu primeiro longa-duração: 40. Sente-se jungle, grime e drum’n’bass nas batidas, repetimos os refrões permeados de reverb e auto-tune, e, para um contraste meticulosamente composto, são-nos contadas narrativas emocionais e sombrias que tanto abordam o mundo interno do rapper como fazem considerações sobre o zeitgeist tecnológico e social em que vivemos. Fica projetada, então, uma ambiência de melancolia properly british. É só aproveitar o filme que conta a história de uma Inglaterra — e de uma Londres — que raramente é publicitada. 


[Rapsody] Please Don’t Cry 

Please Don’t Cry é um álbum sério, de uma rapper séria, que sentimos dedicar todo o seu tempo acordada à manufatura de uma arte que demora anos a ser construída, polida e finalmente apresentada a um público. Talvez por esta razão não tenha a atenção que merece — já não há um hábito generalizado de prestar atenção a todas as arestas, de reparar em todos os ângulos perspetivados, de nos imergirmos na música completamente, abertos a recebermos experiências de um outro. 

Mas deixemo-nos de sociologias baratas e vamos aos fatos: Rapsody é uma génia do hip hop. Em cada faixas das vinte e duas deste disco, o seu 4º desde 2012, somos expostos a uma enxurrada de punchlines que nunca ouvimos antes, a uma variedade de flows numerosa e a devida mestria a dominá-los impecavelmente, e a uma seleção de instrumentais incólume. A norte-carolinense aborda a sua música, a si própria e à sua psicologia introspetiva e emocional como se de uma cirurgia se tratasse — e mesmo assim temos a certeza que quando se refere a si própria como absolutamente underrated e, ao mesmo tempo, das mais respeitadas do game, ninguém se poderá opor. Nem os refrões mais orelhudos do disco retiram a aura de boom bap puro e duro do projeto, que, como seria de esperar de uma veterana, leva mais de uma hora de duração — e cujos convidados são arrebatadores, indo desde Hit-Boy, Erykah Badu, Alex Isley e Lil Wayne até, entre outros, Phylicia Rashad, que serve de voz de terapeuta e terapêutica. 

Please Don’t Cry será provavelmente o melhor álbum do ano que não verão representado em muitas listas, portanto serve este parágrafo para vos convencer a convencerem os vossos amigos a ouvirem. Já está na altura de Marlanna Evans ser reconhecida como uma das melhores de sempre.

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