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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 03/07/2024

Um reforço de Leonardo Pereira aos discos de hip hop que ficaram pelo caminho.

Burburinho: Junho 2024

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 03/07/2024

Em Burburinho, Leonardo Pereira olha pelo retrovisor e oferece destaque aos discos — muitas vezes não tão óbvios — que mais o marcaram ao longo do mês anterior, com especial enfoque para tudo aquilo que se vai colhendo nos campos do hip hop. Sem restrições ao nível da estética, por aqui vão cruzar-se propostas que vão desde o mais clássico boom bap às cadências soulful que aproximam o género do r&b, não esquecendo nunca as reformulações mais modernas do som nascido em Nova Iorque, que hoje gera infindáveis ecos a partir de qualquer cidade à volta do globo através das visões gélidas do trap ou do drill.


[skaiwater] #gigi

Um dos álbuns mais ecléticos do ano vem de Nottingham, talvez o último sítio de onde esperaríamos um portento como este. skaiwater: produtor, rapper e songwriter queer nascido no Reino Unido mas baseado em Los Angeles, é um dos titulares de uma equipa do hip hop que trespassa os pólos do género com uma facilidade e uma intencionalidade incrível. Em 2018, começa a colaborar com Lil Nas X, ainda desconhecido, e desde aí o caminho que a sua música tem feito é errático, dissonante e barulhento da melhor maneira possível. 

A matéria-prima de #gigi é de uma heterogeneidade extensiva: baladas artilhadas com graves que distorcem, refrões orelhudos entre rap disparado entre os pingos da chuva e abordagens a dancehall, hyperpop, funk brasileiro, drill ou rave são exemplos da maquinaria presente no disco, tornando-o numa das experiências instrumentais mais inovativas dos últimos tempos — precisamente pela tomada de decisões sónicas que parecem desafios autoimpostos. Desafios, então, conquistados, com o triunfo final a ser a maleabilidade da voz, do tom, do timbre e da lírica do vocalista.

O álbum, que corre durante pouco mais que meia hora, conta com 5 features, todas elas incriveis: KARRAHBOO, em “wna torture me tn?”, deixa-nos com água na boca para o seu primeiro projeto mais uma vez; Cortisa Star e CARTERTHEBANDIT juntam-se para um dancefloor banger em “choke”; e finalmente Lil Nas X deixa o seu toque de Midas pop em “light!”, partilhando a faixa com 9lives. Se a Internet de 2024 fosse música, talvez escolhêssemos este #gigi para ser representativo do seu caos inerente.


[CHRIST DILLINGER] There’s Evil in This Club

Não é só o mal que está nesta discoteca. É puro caos. Para quem o conhece, este é mais uma voltinha na mente de Aljhae Williams, rapper e produtor do Connecticut, que tem como alcunha “The Coochie Man”. Para quem não o conhece, preparem-se para uma viagem aos cantos mais recônditos de um cérebro que vive num silly, goofy mood. Na companhia do produtor Seepy, que obviamente partilha estes traços e produz os instrumentais para tal jornada, CHRIST DILLINGER decidiu que desta vez ía discursar as suas punchlines hilariantes em house, disco, e funk, sempre acompanhado das tradicionais samples vocais de DJ Smokey que afirmam pujantemente as seguintes coisas: que explodiram uma bomba nuclear na discoteca; que vendem armas, drogas, violência, e terrorismo por um excelente preço; não acreditam em direitos humanos; que as canções são financiadas por dinheiro de petróleo roubado; entre outras tiradas do género. Se já conhecem, sabem do que falamos. Se não, ide ouvir e, de novo, preparem-se. E preparem-se especialmente para a beat de “Gypsy Rose” — um flip do riff de “Freaking Out The Neighborhood” de Mac DeMarco, um dos hinos indie da década passada, que não vos sairá da cabeça durante semanas. Fica a promessa.


[jev.] when angels cry

Jephté Kweto, ou jev., nasceu na Républica Democrática do Congo, viveu na África do Sul, e agora faz de sua casa a cidade de Ontário, no Canadá. Apanhámo-lo pela primeira vez com o seu disco de estreia, the color grey, que nos captou a atenção e nos deixou com aquele gostinho na boca suficiente para nos relembrar do seu nome e dar-lhe tempo quando o víssemos outra vez. Em when angels cry confirma-nos que estávamos corretos em fazer a nota mental.

A produção continua a ser um ponto indiscutivelmente forte no seu CV, com todas as beats do disco a merecerem uma mão-cheia de repetições consecutivas, só para termos a certeza que fizemos a stank face como deve ser. Tal como o primeiro disco, não se estende muito, mas cada canção parece satisfazer a vontade do artista de curar as nossas crianças interiores. 

É com esta vontade que o artista se aproxima a uma persona orgulhosa e bélica, certa do seu poder, com um tom vilão e perverso. O próprio assume que perspetiva o álbum como uma história originária de um vilão — pois é a isso que o trauma dá azo. Podemos raciocinar então que este projeto será mais que um álbum para o artista, e será muito mais para quem o precisa de ouvir. Na descrição do disco no seu site, afirma que o projeto é uma jornada: uma de matar comportamentos e hábitos nocivos, uma de nos separarmos de pessoas que nos sugam a energia.

Apesar disto tudo, acaba por ser um álbum que nos deixa surpreendentemente esperançosos para um futuro em que sejamos melhores. Vamos continuar atentos.


[Sideshow] F.U.N. T.O.Y.

Há dois skits neste F.U.N. T.O.Y. que expõem um contraste interessante. No primeiro, logo na primeira faixa, ouve-se uma voz calejada a clamar, entre risos, que os jovens não vão acabar no paraíso, muito devido à quantidade de prazer que há no planeta Terra — entre eles o rap, iPhones, televisões, Internet e maneiras de fazer dinheiro. O segundo é uma voz mais jovem a introduzir a 5ª faixa do projeto, a afirmar com convicção que o seu ouvinte terá uma condenação eterna no pós-vida devido ao que tem feito durante os seus dias. Entre outros diálogos e monólogos, estes dois deixaram-nos a cogitar particularmente sobre como os fados individuais são coagidos pela abundância de opções, pelo uso ou pela ausência das ferramentas a que temos — ou não — acesso, e pela crença que carregamos em nós mesmos. Enfim, o hip hop underground moderno tem este condão particular de projetar indagações universais muito facilmente através das vivências dos seus rappers, e nós agradecemos todos os dias por isso. Poderíamos passar dias a retirar significados de Sideshow, mas acreditamos que esse trabalho é muito melhor depois de ouvirem a música.

Fora os temas particularmente profundos, encontramos neste 6º disco do washingtoniano mais uma coletânea de flows que tanto se dedicam a serem desferidos com violência e rapidez como a serem quase cantados, prontos para serem dissecados tal como o artista se disseca a si mesmo neles. Por trás deles, batidas que não nos deixam em paz, incessantes na sua variedade de sonoridades, que não deixam Sideshow alongar-se durante mais de 2 minutos, mas nunca nos deixando a sentir que a canção foi despachada, tal é a intensidade a que estamos sujeitos. Há uns traços de concetualidade que vão ligando as experiências que ouvimos, mas também não ficamos perdidos — os tais skits com que começamos este texto vão coligando os sentimentos partilhados. Finalmente, uma das melhores capas do ano, que prende logo a atenção e exige pelo menos uma “vista de ouvidos”. Deveras um brinquedo divertido que não largaremos assim tão facilmente.


[Guilty Simpson] Giants of the Fall

Guilty Simpson é um rapper que parece não se cansar de fazer música nem de explorar todas as sequências possíveis de palavras numa frase. Giants of the Fall é o seu segundo projeto de 2024, e chegou-nos em junho para nos abençoar o verão. Produzido por Kong the Artisan, apenas contando com The Alchemist numa feature, e percorrendo apenas 24 minutos de duração, é um disco que é furtivo na sua qualidade — ouvimo-lo uma, duas vezes, e ficamos satisfeitos. Mas deixa-nos um bichinho cá dentro para ir ouvirmos a terceira, e a quarta, e talvez inserir uma, ou duas, ou três faixas nas playlists habituais; e depois ainda queremos ir ouvir a quinta, a sexta, e agora acabamos a escrever uns parágrafos sobre ele. A voz do detroitiano já é icónica e inconfundível, a sua flow melosa obriga-nos a prestar atenção e a sua habilidade a tecer histórias deixa-nos colados a todas as sílabas que saem daquela boca. Apetece-nos ouvir a décima quinta vez, agora, só por estarmos a escrever sobre ele. São os gigantes do outono a exercerem a sua influência independentemente da estação.

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