Em Burburinho, Leonardo Pereira olha pelo retrovisor e oferece destaque aos discos — muitas vezes não tão óbvios — que mais o marcaram ao longo do mês anterior, com especial enfoque para tudo aquilo que se vai colhendo nos campos do hip hop. Sem restrições ao nível da estética, por aqui vão cruzar-se propostas que vão desde o mais clássico boom bap às cadências soulful que aproximam o género do R&B, não esquecendo nunca as reformulações mais modernas do som nascido em Nova Iorque, que hoje gera infindáveis ecos a partir de qualquer cidade à volta do globo através das visões gélidas do trap ou do drill.
[Richard Milli] Overseas
Overseas, o segundo longa duração de 2024 das mãos de Richard Milli, produtor alemão, faz-nos lembrar um The Expendables em termos de casting e um Citizen Kane em termos de qualidade. A ideia é fácil de entender: e se juntássemos um número impressionante de rappers da nova escola e lhes déssemos um conjunto de beats imaculadas, cada uma aparentemente composta para que todas as qualidades dos vocalistas sobressaem, ao mesmo tempo que se destacam por si próprias dada a virtuosidade nelas aplicada?
Não ouvimos nada que quebre as costuras ou que inove tendências, mas ouvimos onze instrumentais que são constantes lembranças de uma sofisticação elevada, visualizando corredores decorados de retratos de duques e condes, candelabros gigantescos, veludo em tudo o que é mobiliário. As rimas completam esta mansão luxuriosa e traduzem um sentimento de pertença a toda esta ostentação — o braggadocious soa ainda mais verdadeiro, o autoengrandecimento mais pujante, os timbres confiançudos ainda mais pontiagudos nas ameaças e nas histórias de struggle tornado ouro. E ainda nem vos falámos de quem se gaba desta tal maneira: são parte da soirée Estee Nack, Tha Musalini, Boldy James, Willie the Kid, Jay Nice, Ru$h — não se distraiam, ainda vamos a metade —, Crimeapple, Eto, Rick Hyde, Flee Lord, Tha God Fahim e Elcamino. Já faz sentido a comparação com os Expendables?
No final de tudo isto, deixamo-vos com uma certeza: não é preciso um relógio para sabermos que Richard Milli aparece no game para ficar.
[Trademark Da Skydiver] Bags Offshore
Eis a surpresa de final do ano. Alex Washington é Trademark Da Skydiver, rapper de Nova Orleães que já faz parte do game desde 2009, notavelmente tendo integrado o grupo Jet Life — um trio fundado também por Curren$y e Young Roddy. A suavidade do rapper da Big Easy é o que dispara todos os alarmes neste Bags Offshore, o seu segundo disco de 2024, ano em que retorna à produção musical a solo depois de um hiato de 8 anos. A persona carrega um tom moderado, pouco dado à expressividade ou à explosividade, mas o timbre da sua voz é tão assertivo e focado que convence a ouvir o disco até ao final todas as vezes que o começamos.
Um pequeno apontamento para a duração e a quantidade de faixas do disco: 15 faixas em pouco mais que 40 minutos — aquele runtime testado e comprovado. Ao lado de outro pequeno apontamento para a quantidade de convidados: Curren$y, Cuba Chris, Young Roddy e Smoke DZA, todos apreciados de maneiras diferentes, sem distorcer quem é o verdadeiro compositor deste belo projeto. Aborda as beats com uma consistência impecável, tricotando as suas rimas habilidosamente enquanto se desvia, com mestria, de samples vocais orelhudas e incorpora instrumentais cativantes que se equilibram entre uma contemporaneidade e um respeito à história do hip hop sulista. Paraquedistas assim caem sempre de pés primeiro.
[Paul Wall] Once Upon a Grind
Paul Wall faz parte de uma colheita de rappers que parecem afinar o seu trabalho ano após ano, independentemente das circunstâncias, e fá-lo neste Once Upon a Grind com a mesma vontade de trabalhar de sempre. Mais uma vez, os 40 e poucos minutos testados e comprovados, mas aqui em apenas 12 faixas, que vos desafiamos a tentar passar qualquer uma à frente. De uma ponta à outra, como de costume com Paul Wall, somos confrontados com uma voluptuosidade inegável.
Seja através de synths reluzentes, das cordas magnânimas, dos triplets habituais, a experiência que o The People’s Champ oferece é uma que exsuda história, ilustrada por uma quantidade memorável de grillz, suspensões elevadas e jantes que brilham mais que qualquer estrela. É o tal swag sulista que se orgulha de uma adulação à ambição desregrada e cujo respeito pela arte e pelo estado da estrela única é não negociável. Para exemplificar resumidamente, vão as posse cuts em “Can’t Talk, Check Chasin’” e em “Underground Ambassador”, mas também sabe ser o maior do bairro, da cidade, do estado e do mundo em “Platinum Playa” e em “Pocket Fulla Money”.
Aproveitamos para dar um pequeno toque na “ignorância” que o Texas recebe historicamente. A atenção é dividida entre NY e LA, e aqui propomos que o Texas devia, a este ponto, ser considerado um dos grandes estados produtores de hip hop. Ironicamente, parece que Paul Wall nunca se deixou fechar dentro de paredes, tenham elas o tamanho que tiverem.
[Vic Spencer] Being The Bigger Person Sucks
Being The Bigger Person Sucks, a última adição à já vasta discografia do chicagoano Vic Spencer, é uma prova de como o hip hop é uma mistura de vinho tinto e de síndroma de Benjamin Button. O bardo abordado deste parágrafo mantém-se, aos 43 anos, jovial. Desta característica brotam inúmeras possibilidades para uma arte que se prolonga década após década. Neste disco, o seu trigésimo nono (!!!), não deixa de ser um rapper engraçado e genuinamente inteligente na construção das rimas e da persona que tem edificado desde 2010. Se forem fãs dos primeiros trabalhos de Tyler, the Creator, repararão em semelhanças interessantes e que com certeza vos cativarão a conhecer as características que catapultaram Tyler para a ribalta (muito diferente daquela em que está presente agora, mas uma ribalta de qualquer maneira) comunicadas através de vias muito distintas. Os flows são interrompidos por risos maquiavélicos, comentários às próprias bars, silêncios inesperados para enfatizar as situações relatadas por Vic. Apesar dos dez anos a mais do criador deste disco, ambos começam a sua carreira num 2010 que já nos parece longínquo, e deixa-nos maravilhados de como a criatividade o e orgulho na arte conseguem ser expostas de maneiras tão diferentes. Que este parágrafo, no entanto, não seja interpretado como Vic Spencer ter ficado preso no passado; pelo contrário, o que fica connosco depois de umas audições de BTBPS é que há aqui um manuseamento da lírica para que se mantenha uma “aura” séria, percorrendo os habitués enquanto se eleva em relação a outros rappers, ao mesmo tempo que consegue ser hilariante, cravando sorrisos e risos inesperados nos inícios e finais de punchlines.
Um comentário de fecho para as doze faixas do projeto serem produzidas por 12 beatmakers e mesmo assim registarmos uma coesão e coerência surpreendente, por vezes até tocando numa conceptualidade mais profunda do que possa parecer à primeira audição. Fica a dica. E mesmo que seja chato para ele, agradecemos que Vic Spencer seja a pessoa melhor.