[TEXTO] Miguel Alexandre
Controlar a plenitude da nossa liberdade artística mostra-se cada vez mais enleado para qualquer artista, especialmente nos dias que correm, onde o tamanho da cada voz parece ser tão relevante quanto o tempo a que estamos dispostos a dar-lhe atenção. Este peso recai ainda hoje com mais perenidade em artistas afro-americanos, que, numa indústria auto-centrada em padrões fetichizados de beleza e postura, têm primeiramente de se assumir enquanto seres humanos antes de se poderem mostrar como gestores da sua própria mestria. O nosso universo mantém-se focado em comportamentos que mediatizam negros como estereótipos, e a importância da autopreservação nem sempre é tida como algo sério. Dev Hynes, que assina o seu trabalho como Blood Orange, cresceu com a mentalidade de que um homem negro não tem fragilidades, de que o seu valor advém da rigidez dos seus actos e da impassibilidade das suas palavras, pois só assim poderia prosperar.
No entanto, há uma delicadeza inegável na maneira como se mexe com a própria música, algo que se tem registado nos seus trabalhos de estúdio. Os universos que continua a criar seguem a história de Freetown Sound, o álbum de 2016: uma honesta partilha dos traumas da sua juventude. A diferença está na maneira como agora são devidamente processados, analisados e partilhados com uma audiência disposta a ouvir cada vez mais. Assim, em Negro Swan, o conceito é o mesmo, apenas a história é mais intricada, exigindo mais compreensão e respeito por parte do autor.
Hynes é subtil na maneira como aborda este novo disco, utilizando a seu favor as texturas e os tropos de quiet storm, sophisti-pop e dream pop – estilos geralmente não conhecidos pela grandura da sua profundidade contestatária – como caminhos livres para uma conscientização política das mensagens que pretende transmitir. E assim se começa com “Orlando”, uma breve introdução à juventude complicada do compositor marcada por bullying, alienismo e auto-depreciação. Enquanto a produção é aprazível e inofensiva – sons de ruas ocupadas, sintetizadores cintilantes e riff de guitarras eléctricas que nos lembram um Prince de 1999 –, as letras relatam a história de alguém que não se consegue encaixar, tal como o refrão da música nos conta: “the first kiss was the floor”.
A construção de cada melodia é o resultado de um híbrido entre smooth-jazz e ritmos fortemente baseadas em r&b. Aqui, cada instrumento tem espaço devido para crescer e nada é forçosamente apressado. A maior parte das canções resiste ao ornamento inútil, revelando-se gradualmente de forma serena e escoada, e apesar da maior parte abordar temáticas conflituosas, fá-la sempre de uma forma elegante e emocionalmente íntegra. Negro Swan capta molecularmente o sentimento disperso de nervosismo e ansiedade, oscilando-o sempre entre o abençoado e o repressivo. Em “Charcoal Baby”, o primeiro single retirado deste álbum, ninguém quer assumir o papel de “cisne negro”, pois tal posição representa o cenário de uma pessoa marginalizada num momento retrógrado da cultura de massas e da política mundial. Como em muitas músicas deste álbum, “Charcoal Baby” não se contenta em ser simplesmente unilateral: quando chegamos ao clímax da mesma, somos confrontados com a questão, “can we break sometimes?”. A sua resolução nem sempre é fácil, mas a experiência vivida em primeira mão de Hynes coloca-o no centro turbulento do que é ser uma minoria nesta sociedade, de viver como parte destas pessoas que vêem a sua existência e representação banalizadas, numa sociedade que não lhes permite fazer muito.
A par desta história estão os ensinamentos de Janet Mock, uma activista transexual que o artista recruta para ajudar a passar a carga sentimental de música para música. Mock é a personificação física da interseccionalidade de todos os grupos com que Hynes se conecta. Com ela, o cantor aprende o valor de comunidade, a adversão a “fazer demasiado” enquanto afro-americano e os perigos de se expor. Os valores de complacência e altruísmo falam alto nas suas palavras, particularmente em “Runnin’”. A faixa por si só é dos momentos mais límpidos e imediatos do disco, referindo-se também aos períodos impetuosos da sua adolescência, e ecoa entre guitarras acústicas, um dream pop mais fugaz e uma interpolação entre trabalhos vocais de Kevin Parker e Elizabeth Fraser. No final da canção, Mock traz-nos de volta à realidade: “Stop pretending/Stop performing in ways that people wanted me to/To actually how up for myself/And to be myself”.
No meio de tantos estímulos, é Dev quem controla e a ideia final vem sempre dele, girando tudo à sua volta de uma forma tão imperial, mas ao mesmo tempo vulnerável. E o mesmo sucede quando se ouve este trabalho isoladamente: “Jewelry” brilha perfeitamente na sua desconexão, enquanto “Dagenham Dream” e “Nappy Wonder” soam a um synth pop retirado directamente dos anos 80, mas com um toque suave à Curtis Mayfield.
Apesar de este álbum contar com colaborações (Georgia Anne Muldrow, Caroline Polachek, Steve Lacy, Tei Shi, Ian Isiah, A$AP Rocky, and Sean “Diddy” Combs), Negro Swan é uma peça única musical e visual. É uma experiência que obscurece as fronteiras entre o acabado e o inacabado; entre a deliberação concentrada e a espontaneidade conjunta; entre experimentalismo indie e uma pop sentimentalista; entre o preto e o branco; entre quem participa veementemente na História e quem fica a olhar nas bancadas. No total, é um conto de sobrevivência e subjugação de minorias cansadas de serem fracamente representadas num meio ainda patriarcal, heteronormativo e racista: é um corpo, que ao longo destas 16 faixas, se manifesta como holístico, nunca esquecendo a sua alma e a sua essência. Em “Hope”, Dev pergunta “what is it going to take for me not to be afraid?”, uma pergunta que só certas demografias compreendem e a que Hynes responde com uma dose generosa de esperança.