É verdade que o posicionamento no âmago do palco, com Bill Frisell, ao centro, ladeado pelo contrabaixista Thomas Morgan e pelo baterista Rudy Royston, deixou claro que este é um trio habituado a espaços mais confinados, o dos clubes e pequenas salas, e que a sua óbvia capacidade de telepática (intuitiva?) comunicação foi afinada ao longo de incontáveis noites a tocar em “circuito fechado”, em compenetramento absoluto. Mas a acústica refinada de uma sala de tamanho generoso como o histórico Teatro Académico Gil Vicente, em Coimbra, exalta uma prestação como a que o Bill Frisell Trio aí assinou na passada quarta-feira, dia 12, expondo de forma cristalina as intrincadas linhas com que se entrelaçam, desembocando numa maravilhosa tapeçaria sonora em que se vislumbram motivos de folk múltiplo, dos Apalaches a Nova Orleães, de blues e soul, de rock e jazz, de música para filmes. Chamam-lhe “americana”, não é?
A passagem por Coimbra surgiu a meio do curto périplo do guitarrista americano no nosso país — tinha tocado no dia anterior em Espinho e apresentou-se na noite seguinte em Lisboa —, mas é parte de uma mais longa digressão e, por isso, Frisell, Royston e Thomas estão naquele ponto de rebuçado perfeito, quando são bem capazes de, sem dizerem uma única palavra, comunicar de forma profunda, antevendo cada gesto alheio, sendo generosos na forma como se complementam mutuamente. Aquilo a que se assistiu na cidade dos estudantes, como, certamente, em Espinho e Lisboa, foi a uma sessão de maravilhamento puro, por parte de três excelentes músicos que em momento algum permitiram que os amplos recursos técnicos de que são dotados se intrometessem na sua dedicada busca por uma simplicidade que chega a ser comovente.
Thomas Morgan é um poço sem fundo de classe, um músico que entende que tem no trio a função de unir o som dos seus dois companheiros: sublinha os discretos grooves fornecidos por Royston, oferece amparo harmónico aos fabulosos desenhos melódicos de Frisell. Tudo como deve ser. O baterista, por seu lado, é dono de um toque tão refinado e subtil que até parece que nem está ali, só que está e o que faz é simplesmente fabuloso: o seu trabalho na tarola é impressionante, de uma inventividade clara, e nos seus discretos solos e pontuações há uma tonelada de saber. Com estes recursos, Frisell, como nos tinha explicado em entrevista, tem a possibilidade de ir a qualquer lado sem que avise previamente os companheiros do destino a que se dirige. O concerto funciona como uma longa suite, sem pausas, uma viagem longa por estrada aberta em que se vai passando por um conjunto diverso de paisagens, da planície às montanhas, do deserto às grandes cidades.
O concerto foi um longo improviso, mas um longo improviso de quem conhece bem um vasto conjunto de standards e de originais, de quem tem um reportório diversificado estudado até ao mais ínfimo detalhe. E depois, tudo é nuance, tudo é arte, sem espalhafato ou arremedos gratuitos. No final de hora e meia de concerto parece que não houve uma nota sequer a mais. O que ali foi tocado foi exactamente aquilo que precisávamos de ouvir.
Frisell tocou sem amplificador, com o sinal da sua guitarra a ser esculpido por um par de pedais e entregue à mesa de mistura assim mesmo, de forma cristalina. O seu uso muito subtil de um pedal de loops expandiu-lhe as possibilidades harmónicas e permitiu-lhe dialogar consigo mesmo, com os seus dois companheiros a terem aí a missão de lhe servirem de tela. E nessa tela Frisell foi pintando de forma tranquila um mural de cores vívidas, pincelada a pincelada, com uma paciência artística quase zen. O ponto alto do concerto foi, claro, a longa versão de “You Only Live Twice”, eterna criação de John Barry para a saga 007. O que Bill Frisell ali operou com aquela icónica melodia foi simplesmente maravilhoso: aquelas frases que já escutámos vezes sem conta no original e em várias versões foram apresentadas, desmontadas, recriadas, retorcidas e remontadas uma vez e outra perante os nossos ouvidos, num longo mantra que certamente transportou todos os presentes — que praticamente esgotaram a sala — até uma outra dimensão. Para quem, como é o caso de quem aqui se assina, conheceu a sala ainda como cinema, aquele momento trouxe à memória noites de luz cintilante em ecrã gigante. Foi impressionantemente bonito. E a ovação final mais do que justificada.