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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 03/06/2024

A autora de Igreja Lesbiteriana e Faminta tem espalhado a sua mensagem por Portugal.

Bia Ferreira: “Eu não quero ficar falando só para quem concorda comigo”

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 03/06/2024

Foi no último fim-de-semana de Maio que Bia Ferreira passou mais uma vez em Portugal, no Festival Aleste, na Madeira, e no Festival Passagens, na Parede, organizado pelos Humans Before Borders. Tendo inventado o conceito da Igreja Lesbiteriana, que deu nome ao seu primeiro álbum — um lugar a que qualquer pessoa que acredite na emancipação social se pode juntar —, a artista brasileira usa a música e o palco como um meio para transformar a sociedade. Já em abril deste ano tinha pelo Musicbox para apresentar o seu último álbum Faminta, um trabalho que se divide numa parte com músicas de amor, afeto e carinho entre mulheres lésbicas e negras, e uma segunda parte com músicas com uma conotação social e política, usando as palavras como meio de questionamento e denúncia de problemas como a fome, o racismo, ou o colonialismo.

Foi, entre outras coisas, sobre as reparações históricas, a necessidade do afeto, ou a forma como a religião e a espiritualidade influenciaram o trabalho de Bia Ferreira que falámos nesta entrevista, decorrida antes da viagem que a levaria a primeira vez até à Madeira. Está ainda programado um concerto a 7 de junho em que Bia Ferreira é convidada do rapper Angolano MCK, em conjunto com Valete e Gilmário Vemba, bem como o espectáculo no Palco Principal na Festa do Avante em setembro deste ano — são bastantes as portas que se têm aberto a esta proposta de mudança e cada vez mais as pessoas dispostas a embarcar nessa revolução.



No dia 1 de abril, publicaste o vídeo da música “A Conta Vai Chegar”, cuja letra reclama uma conta que deve ser paga, neste caso fazendo um piscar de olhos a Portugal devido à sua história colonial. No fim desse mês, o Presidente da República de Portugal Marcelo Rebelo de Sousa defendeu o pagamento de reparações por crimes da era colonial, assumindo a responsabilidade pelos erros do passado. O que tens a dizer sobre isto?

Libera os imigrantes de visto. Dá cidadania para todo o mundo que vem dos PALOP. É um jeito bem legal de começar essa reparação. Porque falar “ah, precisamos reparar”… Estou esperando. Ou cair o dinheiro na minha conta, ou eu parar de ter que ficar três horas seguidas numa fila de imigração para entrar nesse país. Ninguém pediu documentação para os portugueses quando chegaram lá para colonizar todo o mundo. O discurso é muito bonitinho. “Ah, precisamos sim reparar”. Depois de a gente falar durante muito tempo que essa conta tem que chegar e que existe uma dívida, depois de anos e anos de negação, eis que agora, um pouquinho antes de sair, ele quer fazer uma cena e dizer que existe uma reparação. Eu também acho que ela deve ser feita, e deve começar pela valorização da humanidade das pessoas migrantes aqui em Portugal, principalmente dos PALOP. Quer reparar mesmo? Vamos começar a dar uma qualidade de vida, acesso à saúde, à educação, à moradia, para essa galera que vem para cá e precisa ficar lutando para um direito de talvez conseguir um senhorio que alugue para imigrantes. Então eu acho que é muito mais do que só um discursinho de “ah, reconhecemos e precisamos reparar”. Tá bom, falar papagaio fala, sabe? A gente vem para cobrar essa conta e ela vai chegar mesmo, e se o governo português precisar de ajuda para pensar políticas públicas de reparação, a gente está aí também.

Em Portugal, qual é que tem sido a reação do público quando falas desta questão? Porque mesmo falando do Marcelo Rebelo de Sousa, foram declarações que foram muito polémicas em Portugal.

O povo português tem uma identificação de ofensa, então quando a gente fala “a conta vai chegar” e que “há uma dívida histórica”, as pessoas portuguesas já se sentem ofendidas: “Opá, mas eu não tava lá há quinhentos anos atrás.” Eu não tou falando de você. Quando eu falo sobre pessoas brancas, eu não tou falando sobre todas as pessoas brancas. Tou falando de um sistema chamado branquitude que beneficia essas pessoas. Quando eu falo “a conta vai chegar”, não é para aquela família pobre, analfabeta, do interior, que tava comendo bolotas enquanto 1% tava rico. Tou falando desse 1% que foi lá para o Brasil e que segurou todas as riquezas de exploração de todos os países. Não só do Brasil, como de Angola. Eu tou falando que essa conta tem que chegar, e se você não é dessas famílias, não é sobre você que eu tou falando. Com você, que não é dessas famílias, eu tou falando assim: “Vamos lutar junto, porque você também tava a comer bolotas enquanto eles estavam enriquecendo à custa da exploração dos outros.” Existe em Portugal uma falta de consciência de classe, que é entender que quando eu falo sobre a conta vai chegar, eu não tou falando sobre aquela pessoa que é pobre, que a família toda foi pobre, que o avô ainda era analfabeto. Os portugueses se sentem muito incomodados como se fosse deles. O que eu venho tentando trazer com esse diálogo da conta vai chegar, é fazer com que o povo português entenda que eles também foram explorados, e que a reparação para os países colonizados é necessária. Quando isso acontecer, eles vão ter um avanço. O que eu tenho encontrado aqui em Portugal é um monte de gente que me odeia porque acha que eu odeio português, que eu tou cobrando uma dívida deles, que eles não têm conta nenhuma para pagar. E aí a pessoa não tem culpa de ser branca e portuguesa, eu também não tenho culpa de ser preta e brasileira. Mas eu arco com as consequências de ser uma pessoa de um país colonizado, onde há cem anos atrás vendiam pessoas parecidas comigo. Não é um ódio contra os portugueses. Não é um discurso contra o povo português. É conta a opressão e a colonização imposta nos PALOP, onde há 50 anos ainda existiam colónias de Portugal. Isso precisa de ser reparado. Quanto mais rápido as pessoas entenderem a consciência de classe delas, mais rápido a gente consegue fazer essa reparação. O problema maior é que o povo português todo se dói, achando que eu odeio brancos, quando na verdade o que eu estou a dizer é: “Gente, alguém lucrou com isso, e quem lucrou tem que pagar.” É só isso mesmo. Acho que Portugal enquanto Estado, deve sim aos países que foram ocupados, colonizados, explorados, roubados por Portugal, mesmo que o país de Portugal seja menor que a cidade de São Paulo. 

Em que ponto achas que essa conversa está neste momento?

No momento está todo o mundo brigando. Com o avanço da extrema-direita a galera tá distorcendo os discursos para criar uma pseudo-ameaça. Os imigrantes representam uma ameaça, representam que você não vai mais ter emprego, que você não vai mais ter direitos, que agora tudo é para os imigrantes. Não é não. Senhorios não querem alugar, essas pessoas estão a morar na rua. Eu venho para cá há 7 anos e eu nuca vi tanta gente na rua como eu vi esse ano. Eu tou assustada. Eu acho que o avanço da extrema-direita, do conservadorismo, tem criado lorotas na cabeça das pessoas, e há um impasse nessa discussão. Há muita gente que cola nos meus shows e canta “a conta vai chegar”, mas há muita gente que acha que eu tenho que voltar para o meu país. Portugal agora está a começar a experimentar uma polarização que o Brasil já vem vivendo há muito tempo, mas agora de uma forma mais direta. A gente tem um nome. A gente tem várias cadeiras do Chega no parlamento. A gente tá vendo essas ideias fascistas a avançarem. A gente tá vendo imigrantes sofrerem violência e ataques na rua por serem imigrantes. A gente tá vendo. O momento agora de Portugal é de polarização total, e se você entende um pouco sobre essa política, quem não toma um lado já tomou um lado. Acho que a gente tem que partir para a educação, porque a educação muda a cultura. A cultura do machismo, a cultura do racismo é mudada com educação. Então se a gente consegue educar um povo, a gente consegue mudar a cultura. Nesse momento a polarização existe, mas como há uma polarização isso significa que existe uma parte da população disposta a discutir esses temas, disposta a procurar soluções. Procuro não ser tão pessimista, embora vendo a realidade do Brasil, eu acho que Portugal tá indo para um caminho bem difícil.

Falando do Brasil, na última vez que deste uma entrevista apo Rimas e Batidas estávamos perto das eleições que elegeram o Lula. Passados dois anos do início do seu mandato, e também invocado bastantes questões que falas na tua música — como a fome, o racismo, a queerfobia —, qual é o balanço que fazes sobre o avanço destas questões, e como é que as coisas mudaram no Brasil?

Nossa, é gritante, né? A gente conseguiu ter de volta, por exemplo, o Ministério da Cultura. Tipo, cultura. A gente tinha cortado 100% dos recursos para a cutura. Pela primeira vez na história há um Ministério para povos indígenas, o poder de compra e o poder de acesso da população tem aumentado… A gente viveu períodos onde as pessoas estavam fazendo fila em camiões de ossos para pegar os ossos do boi e fazer uma sopa porque não tinha dinheiro para comprar carne, comida. O poder de compra da população tem aumentado muito, o governo do Lula também deu o perdão de dívidas. Pessoas que estavam com nome sujo ou que estavam com dívidas com o governo até cinco mil reais foram perdoadas, e isso ajuda com que essas pessoas possam pegar o dinheiro que elas tavam guardando para pagar uma dívida e investir na sua casa, investir na sua família. A qualidade de vida do povo brasileiro vem melhorando, embora a gente esteja vivendo todas as consequências dos desmandos do último desgoverno que a gente teve. Não adianta falar que saiu o Bolsonaro porque foram muitos retrocessos. Agora a gente tá nesse caminho de tentar reconstruir. Mas é visível que o povo brasileiro consegue ter um pouco mais de acesso a partir de um governo que pensa na população mais pobre, que pensa em direitos sociais, que é o mínimo. Não sou Lulista, mas acho que ele tem feito um bom governo.

O teu álbum mais recente, Faminta, tem duas partes: a primeira com músicas de amor, e a segunda com músicas com um posicionamento político mais declarado, a fazer denúncia de vários sistemas de opressão. Como foi o processo de idealização do teu álbum para chegares a este formato de duas partes com estas duas conceções diferentes?

Eu normalmente só falo da minha vida. Não consigo contar uma história que eu não vivi. Eu nunca tinha experimentado o afeto como forma de sobrevivência. A gente não é ensinado a se gostar, a se olhar no espelho e achar bonito, então, quando eu pude experimentar o amor, o afeto, o amor próprio, mas também ver outro corpo negro vendo beleza em mim e me amando, foi quando entendi que se não houvesse aquele suporte de afeto, eu talvez não estivesse aqui conversando com você agora. Aí eu entendi que no meu primeiro álbum, o Igreja Lesbiteriana, eu trouxe muita crítica social. Escancarei todos os problemas mas não trouxe a solução. Tava ali fazendo uma denúncia, mas eu não fazia: “Tá, como é que a gente resolve?” E eu comecei a entender o afeto como tecnologia de sobrevivência, e o acesso à informação como tecnologia de sobrevivência a partir dessa vivência do afeto. Esse meu álbum foi pensado para trazer primeiro a solução, humanizar os nossos corpos, dizer que a gente pode amar e desenvolver, não só o amor pelo outro que se parece com a gente, mas também o amor próprio, e trazer ele como a maior tecnologia de sobrevivência. O que faz com que a gente não tenha sido extinto é o amor dos nossos entre os nossos. É por isso que continua tendo gente preta em tudo o quanto é lugar. Se só a política de branqueamento e clareamento da população fosse feita, talvez eles teriam conseguido, mas o afeto entre nós foi o que nos manteve em quilombos, é o que nos manteve vivos e existentes com essa melanina e esses fenótipos que a gente tem. Eu entendi que o afeto é o que mantém a gente vivo. Eu comecei o álbum trazendo tecnologia de vida. Porque depois que você se fortalece com amor próprio, com amor pelo outro, é quando você consegue tar forjado para lutar pelos direitos que eu trago nas denúncias na segunda parte do álbum. Ele foi pensado mesmo numa ideia de velho e novo testamento, trazendo o afeto como tecnologia de sobrevivência, e também o acesso à informação. Pensei se eu ia lançar um álbum, depois outro álbum, se eu misturava as músicas e lançava um álbum só com menos canções… Mas para mim não fez sentido, então eu lancei um álbum duplo, e quem não gosta de ouvir política vai poder ir lá para o outro lado e ouvir só amor, que não deixa de ser política. E quem não gosta de amor, vai lá ouvir os raps, que tá legal também.



Falando no amor, acaba também por ter um simbolismo importante, porque estamos a falar do amor entre mulheres lésbicas. Existem, se calhar, poucas referências que tu tens na construção daquilo que é o teu processo na construção musical e pessoal. Como foi isso para ti, no que concerne o poder de ter músicas de amor sobre mulheres lésbicas, que se calhar não é assim uma coisa tão comum?

Sim, porque se a gente parar para pensar, há cantoras lésbicas que cantam em língua portuguesa. Vou citar as do Brasil, que são as que eu conheço: Simone, Cássia Eller, Zélia Duncan, Maria Bethânia, Gal Costa, Maria Gadú… Vou começar a citar as negras agora: Sandra de Sá, Ellen Oléria, Leci Brandão… Mas até para ser lésbica tem uma cara. Ellen Oléria, Leci Brandão e Sandra de Sá são história da música negra brasileira, mas elas não têm o reconhecimento que têm a Zélia Duncan, a Cássia Eller. Porque até para ser sapatão existe um estereótipo: branca, masculinizada, falando no masculino de si mesma, usando entrelinhas para falar que ama uma mulher, mas sempre num lugar obscuro, escondido. Eu sentia falta de ver a fala aberta sobre afeto de mulheres. Porque é que tem funk, putaria, cantando “senta na minha pica”, e não tem “roça xoxota”? Então eu acho que, nesse lugar, senti falta de me ver representada. Por outro lado, não conheço casais lésbicos de mulheres negras que tenham família. Não é um lugar pensado para mim, esse lugar de afeto, de ser casadas, ter filhos, ser uma família. Esse imaginário não existe para mim. Eu queria viver o que eu imaginava ser legal. Queria que as meninas adolescentes jovens, lésbicas, não fossem igual à Bia que tinha 13 anos e fez uma música pedindo para Deus: “Por favor, eu não quero ser lésbica. Por favor tira isso de mim, eu não quero ser assim.” Eu quero que as meninas que se entendam enquanto homoafetivas consigam olhar para mim e entender: “Porra, é possível se amar, é possível a gente se amar entre si. Não tem problema nenhum eu amar outra menina.” Faltou isso para mim. Sempre era um lugar heteronormativo, mesmo quando era entre mulheres. Essa primeira parte do meu álbum vem para falar que: “Oh, é música para sapatão fazer nenê”. É música de sapatão para sapatão. É uma mulher falando para outra mulher, e com um recorte racial. Eu tou falando como mulher negra para outras mulheres negras, nesse lugar de afrocentrar também o afeto entre mulheres negras. Isso é extremamente importante. Acho que para criar para mim mesma a existência do imaginário que eu queria ter visto. Não conheço famílias de mulheres lésbicas, longevas, com filhos, netos e um legado. Então eu quero. Quero ter muitos filhos. Quero ter uma família. Quero ver meus netos falando que eles vieram de uma mulher sapatona. Então eu acho que pregar o afeto entre nós e falar abertamente sobre o afeto entre mulheres, faz com que as meninas não queiram ser diferentes do que elas são. Sabe, quando ela se percebe, rola uma rejeição automática assim mesmo, por entender que é errado. Então talvez se elas me virem amando, sendo feliz e sendo amada, talvez se elas virem um corpo como o meu praticando afeto como tecnologia de sobrevivência, elas queiram viver também.

E tens recebido um bom feedback?

Ai eu tenho. Tenho recebido vários feedbacks! De meninas que tinham medo de falar sobre ser lésbica para a família e que se sentiram encorajadas a partir do meu trabalho. Na minha vida mesmo, a minha companheira, ela tem 35 anos e a família não sabia que ela era lésbica até a gente começar a namorar, e entender a partir da arte essa liberdade de poder ser. Eu tenho muitas fãs que são crianças, cara. Aí é muito lindo, é entender que essas crianças vêem duas mulheres, e isso não é “tou incentivando essa criança a ser sapatão.” Eu tou incentivando essa criança a respeitar que existem outras formas de afeto. Essa criança pode ser uma criança heterossexual. Não tou querendo impor a ditadura gay. Mas eu quero que essas crianças ao verem a existência dessa mulher negra, lésbica, amando, elas naturalizem o afeto entre mulheres. Então eu acho que a gente vai criando crianças menos preconceituosas, independentemente da orientação que elas tenham quando virarem adultas. Tenho visto essa mudança nas pessoas que têm acesso à minha arte, que me mandam mensagem, ou que falam comigo no final do show. Acaba o show e eu falo com todo o mundo, abraço todo o mundo, e a galera vem falar mesmo, e eu acho isso bonito. Isso me fortalece também, porque é horrível você ser exemplo. Porque quando você se coloca no lugar de ser exemplo você não pode errar. E você desumaniza a si mesmo. Então, eu procuro não ocupar esse espaço. Então, que legal que você olha para mim e se sente representado, quando você fala isso para mim eu olho para você, e eu também sinto força para continuar a revolução que eu prego, então a gente se retroalimenta. Não há um “eu ensino, você aprende”. Há uma retroalimentação de como é que a gente convive. E aí eu volto de novo para o afeto como tecnologia de sobrevivência, que é olhar o olho do outro, é a gente se conseguir reconhecer, se olhar, e querer tar vivo. Descobrir como é que a gente faz para se manter aqui.

Nas tuas músicas, tens referências a elementos do candomblé, religião de matriz afro-brasileira. Como foi o teu processo de encontro com esta forma de espiritualidade e de que forma é que ela influencia o teu trabalho?

Eu vim de uma família cristã, os meus pais são pastores evangélicos. Eu cresci achando que qualquer coisa referente à cultura afro-brasileira é do demónio, então, a minha aproximação com a cultura de candomblé foi através da arte. A minha aproximação de tudo o que eu tenho na minha vida hoje, foi a arte que me levou. Eu ia ter uma roda de samba num terreiro. Me falaram que era num terreiro, falei “tá amarrado em nome de Jesus” e vou [Risos]. Quando eu cheguei lá, era uma roda de samba, várias cadeiras em círculo, todo o mundo sentado. Começou a tocar um, começou a tocar outro. “A Bia canta também hein? Daqui a pouquinho é a Bia que vai pegar o violão.” Eu novinha, tipo, para mim isso era o ápice da desobediência do que os meus pais me tinham ensinado na vida. Tinha, sei lá, 17 anos. E aí tinha um cara. Ele tinha, sei lá, 30 anos no máximo, e ele sentou no meu lado. “E aí, já veio aqui antes?” E eu: “Não, é a minha primeira vez.” “Ah, e você gosta? Você é de candomblé?” E eu falei: “Ah, eu não acredito em nada dessas coisas, para mim é tudo fingimento e invenção, eu vim pelo samba mesmo, e porque falaram que ia ter comida.” Eu conversando para esse cara do meu lado, e ele tinha um copo de cachaça ali. Eu “uh”, virei aquela cachacinha, e fomos para o samba e eu não me lembro mais da noite. E durante esse período, os meus amigos muito preocupados comigo, e o pai de santo falando: “Deixa, só para ver se ela acredita.” E eu fiquei extremamente assustada. Tipo: “Que é isso? Não sei o quê. Tomei a cachaça e apaguei? Que negócio que é esse?” Fiquei toda receosa. E aí teve outro samba, comecei a virar amiga das pessoas. No terceiro samba que eu fui, eu descobri que aquele cara que eu falei que eu não acreditava era o pai de santo da casa. Aí ele me chamou para conversar, e ele falou: “Eu também não acreditava, eu também sou cético, eu preciso ver para crer, eu só acredito no que eu estudo. Você quer estudar o candomblé comigo?” E aí, eu comecei a estudar, ele veio me trazendo livros, histórias, me contando os oriquis de cada orixá. E aí foi fazendo sentido para mim, porque eu entendi que é sobre a natureza, é sobre o respeito e o culto à natureza enquanto divindade. Então, os rios são de oxum. Se você for para África, há um rio chamado Oxum. Não tou falando que tou adorando um espírito que… Eu tou falando sobre a natureza: águas doces Oxum, águas salgadas Iemanjá, a natureza de Oshosi, a cura de Obaluaiê, se tou falando do vento é Iansã. Eu dou nomes, mas são elementos da natureza que fazem parte de quem sou. Para a espiritualidade existir em mim, eu preciso tar conectada com a natureza, e o respeito à natureza é o que o candomblé ensina. O respeito à ancestralidade afro-diaspórica, porque é sobre os meus antepassados que vieram de África e que não deixaram morrer a cultura de espiritualidade deles, mesmo com sincretismo, ou mesmo com a mistura com a cultura indígena, mesmo com as necessidades de tecnologia de camuflagem para continuar existindo, a gente continua lá. Se você ouvir um canto de um terreiro de queto e você for para a Nigéria, você vai ouvir o mesmo canto, a mesma letra, com a mesma melodia. E chegou 500 anos atrás lá no Brasil. Como é que chegou assim e como é que se mantém? Então, eu acho que quando eu comecei a me entender enquanto corpo preto, mulher negra, nessa sociedade, eu fui atrás de quem era eu, e fui guiada até o candomblé, que é onde eu consigo estudar e saber um pouco mais sobre o que é que é ser preto, sobre resistência, ancestralidade, sobre cura através da planta, muito mais sobre mim mesma do que qualquer outra coisa.

Tendo sido uma grande parte da tua vivência marcada pelo evangelismo, de que forma é que também foste ficando com coisas contigo no teu trabalho com aquilo que retiraste da vivência na igreja evangélica?

Tudo o que eu faço tem referência ao que eu aprendi na igreja evangélica. Eu fiz aula de oratória, estudei hermenêutica, teologia, aprendi a falar em público, aprendi a persuasão, estudei programação neurolinguística — tudo na igreja. Eu era filha do pastor e eu estava sendo treinada para substituir o meu pai. A minha forma de falar no meu show, eu aprendi na igreja. Como é que as pessoas choram no final do meu concerto, eu aprendi com programação neurolinguística, como é que eu vou falar para atravessar o interlocutor. Botar uma música de contar história de porquê “Cota Não é Esmola”, é o que faz as pessoas ouvirem uma música de 10 minutos quererem ouvir de novo. Porque eu crio um ciclo de emoção durante uma contação de história. E isto é uma pregação. Quando você vai na igreja e você começa um ciclo de emoção para contar uma história e falar “aceita Jesus”, eu só falo “diga não ao racismo”. Então, eu acho que eu uso as mesmas tecnologias que eu fui ensinada, para desfalar tudo o que eles falaram lá, porque eu acho errado. Mas para reeducar as pessoas, e porque eu entendi que é uma técnica que funciona. Se não funcionasse as igrejas estavam vazias. Então, já que é para gostar de igreja, que venham para a minha. Eu não peço nem dízimo. 

E falando mais na parte musical, tu tens várias influências e estilos no teu trabalho, desde a MPB, hip hop, blues ou reggae. Como é que foi, agora mais especificamente no último álbum, o processo de junção destes vários elementos, e todo o processo até chegares ao resultado final com todas essas influências?

Eu sempre gostei de misturar as coisas. Então eu nunca soube falar qual é o género de música que eu canto. “Ah, você é cantora do Brasil?” Sou cantora do Brasil. “E você canta o quê?” Ah, as coisas que eu escrevo. Às vezes é um reggae, às vezes é um rap, às vezes um samba, mas eu canto música autoral. Falo que eu faço música contemporânea negra brasileira. E esse álbum foi um álbum que eu queria trazer aquela chaminha que acendeu a primeira vez que eu ouvi rap. “Us mano pow! As mina pá!” Primeira vez que eu ouvi rap era meu irmão mais velho ouvindo, e era música de bandido. A minha mãe batia nele quando ele botava esse som, então eu não podia mais ouvir, aí a gente ouvia escondido, mas tipo assim, eu queria trazer de volta aquela chaminha que eu falei: caraiii. Então, a identidade sonora, ela é bem noventista mesmo. Eu nasci em 93, e quando eu comecei a ouvir rap, eu ouvia os raps de 90, 2000 talvez, mas ouvia muito Racionais, ouvia MV Bill, ouvia Facção Central. Eu ouvia tudo o que o meu irmão ouvia, e aquela identidade sonora do boom bap, e contar história, e o instrumentalzinho em loop. Eu quis trazer a identidade sonora daquela época, que foi quando eu aprendi o que era rap. Então tenho um drill, tenho um trap, mas a maior parte dessa sonoridade é essa ideia noventista mesmo. Tem uma faixa que se chama “Rajada” no meio do meu álbum que é um disco. E tá tudo bem, eu queria trazer essa identidade do que me toca, do que me atravessa assim, e eu queria que as pessoas dançassem, mesmo que eu esteja falando uma parada séria. Porque eu queria que a galera mexesse o cérebro, mas que também não ficasse naquele lugar: “O show da Bia tem que ser só no teatro, porque todo o mundo tem que ficar sentado olhando para ela.” Não, a Bia pode fazer shows em outros tipos de palco, porque a galera se movimenta. A música gera movimento, então eu quis fazer esse álbum como um álbum que gera movimento. Por exemplo, o show desse disco, o Faminta, que eu ainda não apresentei ele com a minha banda aqui em Portugal, eu não toco instrumento nenhum. No show Faminta tenho uma banda e eu em movimento no palco, porque as pessoas me vêem em movimento e elas se querem movimentar. A ideia é que as pessoas se movimentem. Você não vai ficar parado. Eu quero te ouvir cantar. Cê vai cantar comigo que a conta vai chegar, sim amor. Canta comigo. Então, esse álbum foi feito para gerar movimento. Não queria as pessoas paradas só assim, depois falar que foi um soco na cara. Não quero dar um soco na sua cara. Eu quero tocar o seu coração. Quero que você se comova com o que eu estou apresentando e lute comigo. Essa é a minha única meta. Então, não quero dar um soco na sua cara, quero que você entenda que a gente tem que lutar junto. Então eu acho que movimento gera isso, e essa foi a ideia do álbum.

E como têm sido os concertos que tens feito cá em Portugal, nomeadamente o último no Musicbox?

O Musicbox, para mim, foi insano. Foi a primeira vez que eu fiz um show naquele formato e era o show do álbum. Então, eu criei um show novo do álbum para apresentar no Musicbox, e a Sandra, a DJ, arrasou, e eu tentei me apresentar nesse lugar. Eu achei isso muito legal. A partir do Musicbox, eu tenho um novo show do álbum Faminta para apresentar. Tenho o show do álbum Faminta com violão e voz, e eu tenho outro com banda. Nesse ano, eu acho que o show mais quente, de calor mesmo que eu senti, foi esse do Musicbox. Então, eu comecei a querer isso em todo o show. Mesmo que seja um show de violão, eu tou tentando criar esse lugar do “vem junto, porque a gente vai criar uma onda de calor aqui.” O último show foi na Bélgica e saímos do palco com a galera cantando “Sharamanayas”, e as pessoas bem compreendidas daquilo que aconteceu ali. Foi muito bonito. Eu tenho esperado essa energia em todos os shows, então eu tou contando antes, mas espero que seja assim nos dois próximos que eu tenho, que é na Madeira e aqui em Lisboa, na Parede. Mas o que eu quero mesmo é que a pessoa saia diferente do jeito que ela chegou. Se ela sair diferente do jeito que ela chegou, já tá bom, mas se ela tiver conseguido entrar em movimento comigo, eu acho que a gente já sai na mesma onda. O que eu espero desses shows é encontrar gente disposta a se movimentar, disposta a sair da zona de conforto, eu espero encontrar pessoas que discordem de mim, porque eu não quero ficar falando só para quem concorda comigo.


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