Próxima paragem: neo-fado. Nas travessias entre Coimbra e Lisboa, Beatriz Rosário construiu um álbum que simboliza essa viagem tantas vezes feita — precisamente intitulado ALFA, comboio que liga as duas cidades — e que foi hoje lançado, a 21 de Fevereiro.
A dualidade percorre o disco ao longo das suas 14 faixas. Beatriz Rosário tem raízes em Coimbra e no fado, mas mais do que nunca quis explorar estéticas urbanas e pop para fundir a tradição com uma modernidade mais electrónica. O fado de Coimbra — cantado por homens, umbilicalmente ligado ao meio académico de que a artista fez parte — funde-se com as produções contemporâneas de muitos artistas sediados em Lisboa.
Beatriz Rosário já tinha apontado nesse sentido em 2022, quando lançou o EP Rosário, composto por uma mão cheia de faixas produzidas por Agir e Ivo Lucas. Agora eleva a sua ambição num álbum que contou com contributos de nomes como Ariel e Migz, xtinto, Murta, Bárbara Tinoco, Tyoz, Icaro, DJ Dadda, Ella Nor, Bruno Mota, Filipe Survival, Feodor Bivol, Riic Wolf, da Estudantina Universitária de Coimbra ou do mesmo Ivo Lucas, entre outros.
Para assinalar o lançamento, entrevistámos Beatriz Rosário a bordo do seu ALFA, que é sobretudo composto por originais mas também inclui novas versões de canções emblemáticas como “Coimbra Tem Mais Encanto” e “Madalena”, esta última tradicionalmente reservada às tunas masculinas, mas que aqui é reinventada numa versão vanguardista e feminista.
Trabalhaste com uma série de letristas e compositores neste álbum. Como é que funcionou o processo? Inicialmente, marcaste uma série de sessões com várias pessoas para ver o que é que resultava daí? Ou havia pessoas muito específicas com quem já sabias que querias trabalhar em determinadas canções?
Foi um processo muito natural. Em 2022 eu estava na estrada e, mal saía dos concertos, ia para estúdio. E comecei a fazer algumas músicas com produtores variados. Comecei isto com o Migz e o Ariel, com o tema “MARIA”. E depois até fizemos logo a “Raspão” e uma série de músicas. Em 2022, apresentei cerca de 40 músicas à editora. A partir daí, começámos a ver quais é que teriam mais potencial para o álbum. E comecei a pensar nestas viagens… Para um primeiro álbum fazia sentido contar a minha história, que é a de uma jovem que nasce em Coimbra e que vai para Lisboa viver. E como fiz tantas viagens entre Coimbra e Lisboa — à procura desta coisa de mudança, de descoberta e autoconhecimento — estas histórias deram lugar à materialização do álbum. Porque são realmente 13 cartas escritas, de histórias verdadeiras que se passaram entre 2022 e, vá, 2024. Nestas viagens fiz várias análises de introspecção — e na altura pensei em usar esta metáfora e convidar, por exemplo, o Migz e o Ariel para entrarem na carruagem daquela estação e fazerem a “MARIA”; noutra estação fazerem o “Raspão”, que é um tema completamente diferente; convidar o Filipe Survival para fazer a produção de outro tema; o Murta para fazer a “Chuva” comigo… Surgiu uma vontade natural de reunir aqui um conjunto largo de pessoas que têm talento e que fazia sentido juntarem-se ao álbum. E é um álbum que é a comunhão de Coimbra com Lisboa. Temos músicos de Coimbra, que são estudantes que fazem parte da Estudantina Universitária e que tocaram nalguns temas, como o “Coimbra Tem Mais Encanto”, “Madalena”… Pedimos-lhes para tocarem cavaquinhos e acordeões que se ouvem, por exemplo, no “De Lisboa até Paris”. Houve uma sinergia entre Coimbra e Lisboa, seja com este convite à Estudantina, seja com toda a malta artística de Lisboa.
E a ti interessava-te trabalhares com um leque vasto de pessoas, de diferentes contextos, para chegares a resultados diferentes e a canções que fossem distintas?
Sim, é verdade. O EP Rosário teve dois produtores, aqui foi um bocadinho mais esquizofrénico, porque em cada música tínhamos quase um novo produtor. Temos muitos dentro do álbum. Claro que depois houve uma produção executiva para criar alguma consistência sonora entre as músicas, mas foi um projecto que abraçou muitos produtores, que deram texturas diferentes ao álbum, também de acordo com as memórias que tenho dessas histórias que vivi.
Este é, obviamente, um álbum que tem um pé na tradição e outro em sonoridades mais contemporâneas, modernas, que vão buscar alguma inovação. Também traças esse paralelismo com Coimbra e Lisboa? Ou não vês a coisa assim?
Vejo muito. Coimbra é uma cidade que está no meu coração. É tradicional, muito académica, muito bonita por isso. Lisboa tem um lastro muito artístico, tem uma panóplia maior e foi por isso que fizemos esta fusão. E também foi algo que aconteceu comigo. Eu estudei em Coimbra, fiz a minha licenciatura, mas depois foi em Lisboa, quando me mudei em 2019, que tive oportunidade para fazer mais contactos com festivais, com mais malta da minha geração… Os ambientes mais nocturnos de Lisboa também ajudaram a despertar este desejo para querer fazer esta fusão. Porque, apesar de eu ter nascido no fado, tenho o desejo de me apresentar de uma forma mais moderna. Que não passa só pela inclusão da bateria — porque, dantes, a cena sobre se era ou não fado tinha a ver com incluir ou não bateria.
Era o elemento mais óbvio para fazer a distinção.
Sim, se era ou não fado. Mas, agora, nem se põe em causa a bateria — já são produções claramente mais pop, outras mais urbanas, como é o caso da “MARIA”, e misturarmos as composições destes produtores que são de universos mais pop com influências mais portuguesas. Tentámos sempre fazer essa fusão no álbum.
Por um lado, nota-se esse cuidado com a tradição e é algo que também tem a ver com a tua história e o contexto de cresceres em Coimbra, uma cidade muito assente nesses cânones. Mas também não tiveste problemas em trazer coisas diferentes para cima da mesa, digamos, e fazer este caminho. Pode ser um equilíbrio delicado, mas artisticamente estiveste disponível para o fazer, mais do que enveredar por uma carreira tradicional de fado.
Sim, é verdade. Eu estava muito integrada no meio mais fadista, das casas de fado, de falar com pessoas mais velhas sobre as histórias que se passavam no tempo da Amália, e isso está muito presente. Mas, não sei porquê, sempre senti esta necessidade de um dia querer tentar fazer algo mais meu, com o meu cunho pessoal. E talvez isto também se deva ao facto de eu ser desta geração, mais jovem, e de sermos muito estimulados por novos artistas e criativos, o que também me levou a querer fazer esta fusão. Nunca tive pretensão, foi algo muito natural. O meu irmão, que é 10 anos mais velho, também me influenciou muito. Era ele quem me mostrava tudo o que se passava nos programas de música, aquele culto do R&B… Grandes artistas, que cantavam e dançavam muito bem, em grandes produções. Lembro-me de às vezes estar no quarto do meu irmão a imitar algumas artistas que ele me mostrava, eu achava aquilo cool. Então cresci com essa dualidade em mim. Gosto muito de ouvir a Amália Rodrigues, mas também gosto muito da Billie Eilish, de ouvir a Rosalía ou o C. Tangana.
E também é algo geracional. Talvez as gerações anteriores pudessem ficar mais ancoradas na tradição, mas num mundo tão global, em que estamos todos a ouvir o que está a acontecer do outro lado do mundo, essas influências acontecem muito naturalmente. Mencionaste a Rosalía e o C. Tangana, que também usam a sua tradição e a levam por caminhos novos… Também é a tua visão artística, aquilo que pretendes fazer com este álbum, dar novos caminhos ao fado, mantê-lo presente mas abraçando essa fusão com outras coisas?
Exactamente, é mesmo por aí que estou agora. Não quer dizer que amanhã não me passe um bocado da cabeça e não faça uma cena tipo 8 e 80. Nós, criativos, acho que estamos sempre a pensar: “Ok, já fiz isto, então e depois? De que é que vou falar? O que é que vou meter? Será que vamos abusar um bocado e irmos por uma cena 100% electrónica? Ou uma cena mais zuka, terrenos mais quentes e tropicais, e vamos misturar com a nossa cultura portuguesa? Ou vamos para algo completamente tradicional?” Isso depende muito da ambiência, do estado de espírito e daquilo que estamos a viver. As pessoas que conhecemos, as viagens que fazemos, as coisas que nos acontecem… Tudo influencia e acaba por determinar a história que vamos contar daqui para a frente. Aqui fez-nos sentido começar isto em Coimbra, para contar esta história de viagem.
E nunca sentiste propriamente o peso de misturares outras coisas com o fado, que nalguns meios mais puristas e conservadores é visto como um género intocável? Ou, para ti, sempre foi aquilo que fez sentido e fizeste só a música que querias ao longo dos anos sem sentires esse peso?
Sim, antigamente as pessoas levavam muito a sério o que é ou não o fado. E isso ainda continua a existir. Este não é de todo um álbum de fado tradicional. As pessoas perguntam-me: “Mas és fadista, és cantora, és artista?” Há uma grande necessidade de criar rótulos do que é que uma pessoa é, como se a pessoa só pudesse ser isto ou aquilo. Eu comecei no fado, tenho esta vontade de misturar o fado… Fado até no sentido da palavra, do sentimento, de sermos mais intensos com aquilo que nos vai na alma, na forma como cantamos… Claro que tento criar uma certa leveza, mas isso está sempre presente na música.
Como referiste, começas o álbum com versões da “Coimbra Tem Mais Encanto” e da “Madalena”. Era uma forma de arrancares com as tuas raízes, mas levando-as por outros universos musicais?
Sim, são músicas altamente conhecidas do repertório académico, mas fizemos alterações. Na “Madalena” fizemos alterações na parte lírica, fizemos uma resposta desta “Madalena” do século XXI à canção da “Madalena” que era cantada pelos estudantes… E eu costumo ir a Coimbra, estou em contacto com tunas, mesmo femininas, e pergunto sempre: “Mas vocês cantam a ‘Madalena’?” E elas dizem logo: “A ‘Madalena’ é uma música do repertório da estudantina masculina”. São terrenos altamente respeitados e esta “Madalena” é um grande ícone, conhecido em Portugal, e que só é mesmo cantada por homens. As mulheres não cantam a “Madalena”. Eu gosto muito da música, sentia esta vontade de cantar a “Madalena” do século XXI, que é a “Madalena” com uma voz mais activa na sociedade, que é um ser livre… Claro que estas coisas, para nós, hoje em dia são mais normais. Mas se calhar ainda não são assim tão normais na cabeça de muitas pessoas. Então também quis mostrar esse lado. De que existe a “Madalena”, nós gostamos e temos respeito. Mas também gostávamos de mostrar o outro lado da “Madalena”, numa voz e num tom feminino. Que não existe. Com o “Coimbra Tem Mais Encanto”, pegámos no refrão, que é emblemático, mas reescrevemos a letra — exactamente com a história deste ALFA, da rapariga que cresce em Lisboa e que se está a despedir de Coimbra.
Por um lado, com essas decisões artísticas, estás a fazer algo que é muito típico do fado, que é fazer novas interpretações de canções tradicionais, que pertencem a um cancioneiro comum. Neste caso, versões realmente novas, com muitos elementos novos. Mas estás a trazê-la para a tua identidade, para os teus sons e, no caso específico das letras, também a fazeres adaptações que achas importantes.
Exactamente, foi isso mesmo que fizemos com os temas de Coimbra. E todos os outros foram obras originais criadas em estúdio.
Tendo tu também essas raízes, sentes que é uma outra forma de dar novas vidas ao fado? Obviamente, o fado é um género que está completamente vivo de muitas formas, tanto com os artistas mais veteranos que continuam no activo, como com as novas gerações que continuam a fazer fado tradicional, mas também há pessoas que, como no teu caso, fundem elementos do fado com outras coisas. Sentes que também é uma forma de manter viva, mesmo que de outra forma, a cultura, a música e a tradição do fado?
Sim, acho que ajuda a mantê-la viva, ou pelo menos a despertar a curiosidade em pessoas que, à partida, não iriam ouvir aquele género mais tradicional. Mas se calhar depois ouvem uma “Madalena”, e até nem gostam de música de tuna ou de fado de Coimbra, e “deixa-me cá ver, isto é divertido, gosto disto”. E se calhar pode despertar o interesse para quererem ouvir mais músicas daquele espectro um bocadinho mais tradicional. Não querendo fazer comparações, o Bad Bunny lançou agora um álbum espectacular em que as suas músicas têm um foro tradicional muito grande. Se calhar, antes do Bad Bunny não ouvíamos aquelas músicas — que eu adoro — numa rádio. Por causa dele, talvez a música rica daquele país [Porto Rico] possa ser mais consumida. Acho que é isso, trazer um bocadinho da cultura das regiões, porque Portugal é um país muito rico e Coimbra tem essa cena muito tradicional, que já vem dos bisavós, dos avós, dos pais e vai continuar, e acho que foi importante trazer isso. Agora, o fado de Coimbra é só cantado por homens, mas foi fixe fazer esse intercâmbio.
Essa disrupção.
Sim, porque efectivamente já estamos numa sociedade mais evoluída, mas na Sé Velha quem é que canta e aparece? Não há mulheres. E também não quis deixar de cantar fado de Coimbra porque acho que o género não tem de ser um critério superior ao critério de ter nascido em Coimbra. É a história de uma estudante que passou por ali, portanto por que não contar essa história? Foi por aí. E venham mais mulheres a cantar fado de Coimbra. Já estive em tantas Latadas e Queimas a ouvir ao final da noite, com os amigos da faculdade, a “Madalena”, que realmente fazia sentido cantá-la.
Como os casos que mencionaste — da Rosalía, do C. Tangana, do Bad Bunny — nos últimos anos temos assistido a uma série de artistas, quer cantem em espanhol ou noutras línguas, a terem sucessos mundiais ao representarem as suas culturas, ao trazerem as suas tradições e misturando-as com estéticas modernas, mais electrónicas, mais pop. Também é um caminho que gostavas de traçar? Achas que há espaço para fazer isso a partir de Portugal?
Claro, não vou dizer que não. Quero muito. Acima de tudo, gosto muito de poder representar Portugal lá fora. Se puder contribuir dessa forma, tenho todo o orgulho nisso e gostava muito de o fazer. Porque acredito mesmo no potencial de Portugal, temos muito talento. Os portugueses têm muita coragem dentro deles e isso é bonito. Por isso, gostava muito de poder levar este neo-fado lá fora. Já o fiz num festival na Coruña, correu muito bem, mas na altura não tinha o meu álbum. Gostava muito de me poder apresentar lá fora e, acima de tudo, de poder apresentar a nossa cena tuga lá fora. Levar a alma portuguesa, com uma abordagem mais urbana, e levar o nosso ALFA.
O fado é, sem dúvida, a música que em Portugal mais portas conseguiu abrir lá fora. Há muitos casos de fadistas que fazem ou fizeram digressões internacionais, por ser um género tradicional local, que não existe noutros países. Achas que isso também pode acontecer com, usando a tua expressão, os neo-fados?
Eu acredito muito nisso. Se calhar não é o caminho mais fácil, mas, também, nesta vida, quais são os caminhos fáceis? Se com o fado tradicional é possível, por que não?