Dirijo-me já a quem nos lê, começando pelo essencial: se em algum momento já se apaixonaram por uma pista de dança, então, no dia 6 de março, é no Lux Frágil, em Lisboa, que vão querer estar. As razões são muitas e algumas delas estão nesta entrevista com Batida, onde partimos de “1 DJ + 1 Microfone” — a sua estreia na escrita e encenação para teatro — e acabamos a viajar livremente pelas muitas possibilidades afetivas, poéticas e políticas das pistas de dança sobre as quais decidiu escrever.
A pista que aqui se encena é nutrida pelo som, pelo ritmo e pelo movimento. Mas, como acontece em tudo aquilo em que Pedro Coquenão se envolve, este é também um território de apropriação e liberdade, uma geografia íntima que conta uma história cheia de outras histórias dentro. Um portal autobiográfico, é certo, mas que é igualmente uma travessia: entre disciplinas artísticas, entre o pessoal e o coletivo, entre tempos e territórios, entre Lisboa e Nova Iorque, igrejas pagãs e mamarrachos à beira-Tejo, vampiros e quartos escuros, tribos urbanas que dançam e uma África que se começa a tornar inevitável na conversa.
Entre o teatro e o stand-up, a música e a dança, o clubbing e o pensamento, conversa-se a partir de diferentes linguagens, num território imaginado onde a interpretação assume um cuidado quase ritualístico. Tal deve-se, também, à sensibilidade de Manuel Moreia, que interpreta esta história na fala, no corpo e no movimento, fazendo-se cúmplice deste caminho em busca de um culto sem sacerdotes, de um templo sem hierarquia, de um ritual sem prescrições que não sejam a bondade, a liberdade, a partilha — em suma, essa singela aposta de que os nossos encontros ainda podem ser profundamente significativos.
As pistas são, talvez, como aqueles oásis de que falava Hannah Arendt: fontes de vida que nos permitem viver no deserto, sem com ele nos reconciliarmos. Um reduto de comunidade num tempo intoxicado pelo individualismo. Uma aposta no encontro numa era do “salve-se quem puder”. Uma insistência na surpresa, numa vida de bolhas e algoritmos. Quem sabe, um lugar onde trocamos umas ideias sobre como adiar o fim do mundo? Importava encher a pista para testar essa hipótese. Quem se junta?
“1 DJ + 1 Microfone” marca a tua estreia na escrita para teatro e na encenação, num espetáculo multidisciplinar que cruza teatro, stand-up, música, dança e clubbing — e que é, também, uma carta de amor às pistas de dança. Como surgiu a ideia de combinar estas linguagens artísticas?
Eu acho que tenho feito sempre a mesma coisa, mas a partir de perspetivas diferentes. Estou sempre a ser DJ, locutor e provocador. Conforme o ponto de partida, o resultado aproxima-se mais de uma ou outra forma. Não sinto necessidade de me definir, mas percebo que cada forma impõe certas regras: num concerto, exploras mais a energia; na dança, o movimento; no teatro, a escrita torna-se essencial. As formas ajudam a estruturar, mas também abrem possibilidades. Eu sempre gostei muito de stand-up e de teatro musical. Posso não gostar de muitas coisas que vejo, mas as ideias são muito boas. A ideia de o teatro musical incluir tudo, sem pudores, ou a ideia do teatro em que tens de trabalhar muito bem o texto, é algo que acho interessante. Além disso, eu venho do DJing e da rádio, onde sempre misturei música, e sempre trouxe a componente da dança. Há momentos em que as coisas confluem, outros em que se afastam. O meu ponto de partida é sempre esta ideia do hip hop, de cruzar movimentos. O hip hop é multidisciplinar e para mim essa é uma palavra normal. As artes em comunidade e a forma como os seres humanos se encontram sempre foram multidisciplinares. Neste espetáculo sou outra vez multidisciplinar e livre, embora tenha assumido um compromisso maior com o teatro.
Como surge essa relação com o teatro?
No teatro, o que mais me agrada é o trabalho de encenação. Como em filmagens, é o de realização. Eu tinha trabalhado com a Mala Voadora num espetáculo sobre a Declaração Universal dos Direitos Humanos, uma peça enorme, e fiquei ligado a vários atores. Aprendi muito a ver o Jorge Andrada trabalhar e fiquei com vontade de me arriscar a trabalhar de forma mais comprometida com essa disciplina. Como em quase todas em que me meto, avancei com uma grande lata, alguma inconsciência. Percebi que tinha de escrever um bom texto, sem muito espaço para variações ou improvisos. Que queria trabalhar com um ator e tinha de ser detalhado naquilo que lhe ia pedir. E que queria trabalhar com alguém que dominasse várias disciplinas. Acabei por encontrar no Manuel Moreira a pessoa perfeita para o fazer. Ele domina a arte do musical, tem muita facilidade com o texto, além de que nunca tinha feito um monólogo, o que para mim era uma motivação extra. O espetáculo foi acontecendo. O primeiro momento foi ter sentido esse apelo em fazer algo que partisse do teatro e da minha história. Foi uma vontade de querer experimentar mais uma forma para me tentar explicar melhor. O teatro obriga-me a ter de concretizar, a comprometer-me. Isso agrada-me.
E como aparecem o stand-up e o clubbing neste processo?
O stand-up também tem muito trabalho de pesquisa, mas quando chegas ao espetáculo, aquilo está 90 e tal por cento fechado. Tal como na maior parte do teatro, o trabalho fundamental é a interpretação. A ideia do clubbing era trazer para o teatro a pressão sonora, o compromisso com o movimento e colocar o público como parte de uma pista. Cada pessoa participa como quiser e decide em grupo, ou individualmente, o que é que quer ser naquele momento. A peça está lá para facilitar o riso, está lá para facilitar o pensamento, para facilitar o movimento. A peça nasce dos meus instintos habituais, mas tenta condicionar-se à forma de teatro sem sacrificar as referências históricas, biográficas, sem deixar de ser intensa, mas também informal.
Sentes que este exercício de escrita para teatro te abriu uma forma de comunicação que ainda não tinhas com a música e com a dança? Ou seja, abriu-se aqui uma nova linguagem que ainda não estava presente e que amplia outras possibilidades para o teu trabalho artístico?
Sim, e tem muito a ver com a escrita. Eu sempre tive receio de escrever. Se há tanta gente a escrever, o que é que eu tenho para acrescentar? O que encontrei aqui foi um espaço para acrescentar a minha experiência própria e de vida. Percebi que o que tenho para partilhar, em princípio, é único, como qualquer pessoa. Neste espetáculo quis comprometer-me com a escrita e essa obrigatoriedade de concretizar as ideias em texto foi a grande revelação. Eu já tinha escrito narrações para documentários, já tinha feito guiões, mas esta é uma forma de escrita diferente, em que em vez de estares a escrever para apresentar determinadas coisas, estás a escrever as próprias coisas. Como eu me coloco fora do palco, isso dá-me liberdade para trabalhar em cima de um personagem. Esse personagem parte de mim, mas o trabalho do corpo e com o ator permite que passe a ser também uma coisa vista por mim e não algo em que estou metido. Isso dá-me muita liberdade.
No processo de escrita, o stand-up depende muito da interação direta com o público e da libertação do riso, uma resposta emocional muitas vezes imprevisível. Já o clubbing e a dança evocam uma energia mais difusa e coletiva, menos ancorada na palavra, que pode ganhar vida própria. Por sua vez, o texto teatral tende a ser mais estruturado, com palavras decoradas e um sentido narrativo definido, privilegiando a escuta e a relação com o ator. Como articulas essas diferentes energias no espetáculo, de modo a criar um diálogo entre elas?
A arte é uma coisa que é urgente em mim fazer. É uma forma de eu me explicar, de eu me sentir aceite por conseguir comunicar. E é também uma forma de intervir ou de provocar pensamento. Normalmente eu tenho esses instintos todos ao mesmo tempo. O “Bazuka” é um bom exemplo disso. Existe a necessidade de fazer um beat para dançar, mas esse beat tem de ter ingredientes de vários sítios, porque o meu sítio é mais do que um. Depois, tem de ter um contexto para que as palavras e o ritmo não caiam do céu e aparecem as vozes, a história da guerra civil e da independência. E logo vem também a imagem e vou buscar imagens ao arquivo e pinto-as por cima. É uma música que parece minimal, e é, mas que tem em si uma série de texturas e camadas. Tenta puxar pela dança, pelo pensamento, pela história. Quando eu digo que faço sempre a mesma coisa, é porque tenho estes instintos todos ao mesmo tempo. Parece que não consigo fazer uma coisa só. Neste caso, o desafio foi conseguir fazer algo que tem as camadas todas que preciso para comunicar, mas que seja percetível e funcional para quem vai ver. O stand-up é desenvolvido sobre a interação e há ali piadas que têm que ver com o gesto, outras têm que ver com a dança, outras têm que ver com o que é partilhado, outras são só para sorrir. Mas o meu compromisso maior foi com a escrita; ter uma escrita bem feita para o ator conseguir ter ferramentas para fazer bem o seu papel, para a iluminação conseguir fazer bem o seu papel, para o som conseguir funcionar como um todo. É esse o compromisso. E depois é ter em conta o público e perceber como podes provocar esse riso. A dança funciona como elemento agregador, um lugar onde voltamos constantemente durante a peça. É um elemento meio que descomplicador e onde tudo se resolve. Rimos, ouvimos uma história, mas depois acabamos a dançar. É um elemento comum para nos encontrarmos. Há ali uma mistura de várias coisas, uma ideia de uma seita que acho que está lá escondida.
Um culto.
Sim, a ideia de um culto. A ideia da pista como elemento alienado, mas também como elemento de encontro. A ideia de uma igreja mesmo, de um ritual.
A peça conta um pouco da história da tua adesão a esse ritual e do papel que as pistas de Nova York, e não só, tiveram nessa ideia de culto.
Sim, a minha igreja é essa. Em miúdo andei muito por clubes sozinho e refugiei-me muito na cabine do DJ. Também dancei muito, mas o momento em que eu me encontrei como pessoa numa pista, sem aspirações a ter de ir para a cabine, foi em Nova Iorque, com os DJs que vinham dessa geração do Paradise Garage. Era um ritual que se chamava Body & Soul. O Larry Levan morreu e o François Kevorkian, o Danny Krivit e o Joe Claussell continuaram a fazer estas tardes de domingo em Nova Iorque. Eu entrei numa tarde dessas, onde eles faziam essa celebração, e em que não havia bebidas à venda, não havia nenhum aditivo. E, de repente, o som era inacreditável. Nessa festa eu dei por mim de braços no ar como se tivesse também eu próprio a ser parte de um ritual, de um culto. Foi uma sensação de libertação e de total à vontade com o meu corpo e com as pessoas que estavam à minha volta. Foi um momento muito importante e de revelação. Voltando ao início, o espetáculo procura esta noção do que pode ser uma pista, da falta que a dança me faz, da falta que a música me faz, da falta que o riso me faz, da falta que estar em grupo me faz. Às vezes o clubbing não chega a ser pessoal, o teatro não chega a ser próximo, e a dança não chega a ser um discurso comprometido. No espetáculo eu tento que haja esse discurso comprometido, mas que haja também pessoalidade, que haja facilitação do movimento. Tentei não sacrificar a piada, nem a qualidade do movimento, nem a qualidade de som, nem as referências àquilo que é a minha vida, o meu contexto familiar ou as referências ao clubbing. É um espetáculo feito para partilhar uma história pessoal, mas também para integrar a história coletiva, que é a história da música de dança e as referências que existem tanto à cidade de Lisboa como à de Nova Iorque ou outras. Há muitas coisas que eu pensei que já eram passadas e que agora estamos a reviver de uma forma bastante atual. Sendo a maior delas talvez este o cruzamento de fronteiras, de origens, de línguas e de formas que a pista de dança permite. A ideia é usar essa lógica da pista de dança, que é uma lógica se calhar pagã, religiosa, e fazer paralelos com tudo o resto, convocando as pessoas para um teatro que pode ser transformado em pista de dança, ou para uma pista de dança que pode ser transformada em teatro.
É o caso desta apresentação no Lux, uma pista de dança que será transformada em teatro.
Sim. É ir para um clube, que tem o melhor cenário possível, com um sistema de som e de luz incrível, e levar para a pista de dança essa formalidade do teatro. Eu quis que o espetáculo começasse no teatro para ser claro que o compromisso é com o teatro e com o texto. Mas depois há toda esta vontade de partir do pessoal para uma ideia de história coletiva. Partir de uma representação e uma performance que parece solitária para uma coisa em que todos são envolvidos. A parte que eu tentei não coreografar em demasia é a parte da dança, para permitir ao próprio ator e às pessoas que estão no espaço terem um momento de descompressão. Aí a intenção é dançarmos juntos e tentar tirar partido de tudo, do que é pessoal, do que é coletivo, do que é físico e do que é mental. Em vez de fazer uma salada de fruta só com maçã e laranja, tentar incluir frutos exóticos, frutos caros, frutos baratos, sumo, algum açúcar e que saiba bem no fim. Que as coisas funcionem bem juntas, mas que também se consigam distinguir.
E faz sentido esse trabalho ter sido feito com o Manuel Moreira, que além de um excelente ator, é alguém com forte intervenção cívica, que encontramos em várias lutas, e também alguém com uma relação forte com a dança e com o clubbing.
Sim. O texto foi muito trabalhado com o Manuel e em cada apresentação voltamos a lê-lo. E não foi só trabalho, foi encontro. A escolha do Manuel não teve só a ver com a sua qualidade técnica, mas também com a sua qualidade cívica, que é muito importante para o tipo de coisas que eu abordo. Não é que tenhas de ser um militante, mas é importante que as conheças e que sintas de alguma forma o que está a ser trabalhado. Nós começámos a trabalhar nisto já há muito tempo, e cheguei a ele por ser um bom ator e um cidadão ativo. E porque ele fazia muito trabalho de pesquisa na pista. Ele sai para dançar, não para pôr música, e foi também essa investigação que eu herdei dele. Esse lado de estar só a dançar e não a teorizar. E também foi interessante levá-lo a pensar comigo sobre todas estas questões da pista, sobre o significado de algumas músicas, sobre como é que se passou de um lado para o outro.
A pista de dança, neste espetáculo, não é apenas um cenário, mas quase um protagonista. E a reflexão sobre a pista pôs-me a pensar nestas novas formas de conformação algorítmica dos gostos — esta ideia de apenas encontrarmos prazer em receber exatamente aquilo de que já gostamos, seja através do algoritmo, seja através de um DJ que escolhe as músicas que já esperamos. Na peça, há mesmo uma cena em que a personagem, ao passar música no Lux, vê alguém erguer um telemóvel pedindo uma música específica. E a personagem questiona: “Que tipo de público é que queremos ser?” e “Que DJs é que queremos ser?”. Ainda vês a pista de dança como um espaço capaz de desafiar essa lógica da confirmação algorítmica? Pode ela continuar a ser um lugar de confronto com o inesperado? Como olhas para esse potencial num tempo em que tudo parece tender para a validação e a familiaridade?
Eu acho a pista de dança o lugar com mais potencial do mundo a seguir à natureza. Naquilo que é a nossa organização urbana, a pista é o lugar mais fixe de todos para pensarmos. É verdade que ao fim de semana tem servido os propósitos industriais de ser um esfoliante brutal para depois conseguirmos encarar a frustração do trabalho durante a semana. É como ir à missa ao domingo para limpar os pecados de sábado. Mas eu não vejo o clubbing assim e acho que a pista pode ser outras coisas. A pista tanto me inspira amor e uma entrega total, como me inspira o desafio ao público e a nós como público. Quando se pergunta “que tipo de pista é queremos ser”, parece-me que temos caído na tentação de ser uma pista populista. É a mesma pista do algoritmo que te dá aquilo que alguém acha que tu gostas de ouvir. A pista pode ser uma manifestação disso, mas também pode ser um contraditório disso. Em Nova York, os clubes fecharam todos também porque havia uma ideia de desafio. Foi tudo mandado abaixo e houve quase que uma higienização da cena club e da cidade como um todo. A ideia é tornar as cidades num cenário viável de exploração comercial e houve uma tentativa de controlar isso. A pista é desafiadora a esse ponto. As raves sempre assustaram mais do que assustam os jogos de futebol. Quando envolve música, ou quando é com algo menos bem organizado, há logo todo um receio: “Mas o que é que se passa ali?”; “São drogados, são gays, são comunistas, são promíscuos?” Essa incompreensão da pista quer dizer que ela ainda não foi completamente descodificada. Hoje em dia já há uma coreografia, não só da pista populista que quer ouvir e ver terminados gestos, como o próprio DJ também se predispõe a isso. Enquanto consumidor de música, eu não quero que ninguém me dê aquilo que eu quero ouvir. Quero que me sugiram coisas como fosse uma loja de discos. Há muitos tipos de DJs, e eu respeito. Mas a forma de DJ que mais me entusiasma, é aquela que tenta contar uma história, que tenta levar as pessoas para lugares diferentes e, ao mesmo tempo, fazê-las encontrarem-se umas às outras num determinado momento. E isso é co-criado. A minha ideia é falar de todas as possibilidades que a pista pode ter. Pode ser só entretenimento, mas também pode ser super íntima, um lugar de expansão intelectual e física, pode plantar e semear ideias, pode ser um espaço para o pensamento, para terapia coletiva, para brincar com simbologias, para epifanias coletivas. Quando penso no Don Letts, ele juntou os punks e os jamaicanos no mesmo sítio e isso deu origem a bandas, a novas ideias, a novas estéticas. Acho que existe esse potencial num clube, existe esse potencial num público que se predispõe e que muitas vezes na história foi um público de margens. A liberdade e o encontro deram-se por serem ostracizados. De repente, foram colocadas num determinado lugar, seja por não terem dinheiro ou por terem uma determinada cor, orientação sexual e, de repente, as pessoas juntaram-se, as lutas juntaram-se, a luta dos direitos civis cruza-se com as lutas LGBT. As pessoas encontram-se numa estrada, a reivindicar, ou numa pista a dançar e a terem experiências comuns.
Falas desse potencial e isso lembrou-me também os casos recentes de intervenções policiais sucessivas e violentas em espaços como o Planeta Manas. Há nessas intervenções um aspeto “interessante” que é o facto daquela pista, como outras, serem dos poucos espaços que o poder não controla. Hoje em dia cedemos todos os dados das nossas vidas e temos existências previsíveis. É possível quase antecipar onde vamos estar, com quem, o que vamos ler, o que vamos ouvir. Mas ao mesmo tempo existem este tipo de espaços onde não é possível saber exatamente quem é que lá vai, o que é que se faz, que conversas é que se têm. Eu vejo aquelas intervenções do Estado quase como uma tentativa de controlar um espaço onde não sabe exatamente o que é que vai acontecer, onde ainda há um lugar para a imprevisibilidade.
E o direito à privacidade, não é? Eu acompanhei o caso muito à distância, mas diria que se não for por questões de emergência ou de segurança, não há razões para esse tipo de intervenções. Quando existem intervenções sem ser por essas razões, normalmente revela que algo de bom está a ser feito. É sinal de que o espaço está de facto a ser desafiador e que está a entrar numa zona fora daquilo que é a organização típica numa cidade. Há bocado falava disso sobre Nova York. Esses espaços descontrolados são essenciais para nós avançarmos. Eles são desafiadores e por isso é que são tão interessantes, porque neles podes ter paz e liberdade. Mas também são espaços de possibilidade para coisas novas se criarem. Eu vejo as pistas como sítios de experiência. São manifestações coletivas e isso torna-as super poderosas, porque estão constantemente a criar. O bom bailarino é o que vai trazer um passo novo, o bom participante é o que vai alinhar nos passos. Há a pessoa que vai passar discreta, há a pessoa que vai fazer a noite. Há quem vá para ver, há quem vá para ser visto. O exercício livre da pista ainda é algo que parece que nunca ninguém controla. O porteiro tem uma interferência, o DJ também. Mas o que acontece de facto, só a pista é que sabe.
Há sempre um imponderável…
Sim. Um momento em que é a pista que valida ou não. E isso é sempre um enigma. As pessoas é que decidem. Somos nós que decidimos se queremos validar e há ali um potencial muito grande de nos vermos uns aos outros e fazermos daquilo um momento fixe. Neste caso, a peça o que tenta é proporcionar isso, essa ideia de aproximação a esse potencial.
Foi fácil a escolha das músicas que acompanham o texto? Recorres a músicas muito distintas e que também são um exercício em torno da tua história pessoal, da convocação de memórias familiares, da saída de casa e da experiência das viagens. Como é que foi o critério da escolha das músicas que acompanham o texto e as cenas?
Nunca sei o que aparece primeiro. Há exemplos em que o facto de estar na [antiga discoteca] Dark Side e encontrar um disco em saldos me faz querer escrever sobre essa cena. Outros em que posso estar a falar sobre uma igreja, e vou à procura de qualquer coisa do Paradise Garage que seja agregadora. E há casos de músicas que sinto que têm mesmo de estar, de momentos que tenho mesmo de contar, ou de histórias que não têm uma música associada e permitem escolher algo mais atual. Não sigo sempre a mesma lógica e também é o nosso subconsciente a trabalhar. Tu conheces a letra, conheces a música, conheces o contexto e, de repente, aquilo tudo choca. Há um ou dois momentos em que demorámos tempo a chegar lá porque não quis forçar o processo, e em que a emoção acontece na realidade. Há um momento em que fiquei com um nó na garganta, e o Manuel também. Depois cada um interpreta os momentos à sua maneira. Tentei integrar músicas minhas sem forçar, mas que me permitissem contar uma história muito pessoal e íntima. Mas ao mesmo tempo tentei que algumas músicas fossem simbólicas do que está a ser contado. Por exemplo, a música do Larry Heard que escolhi é uma versão com o Martin Luther King porque fazia sentido que fosse aquela versão. Tens uma música de disco que eu comprei na promoção da Dark Side porque quando pus o início da música fiquei doido com aquele som. Hoje em dia, aquela música é um hit pop, um clássico do house, mas também foi só um disco que eu comprei numa discoteca da Amadora quando ainda não tinha acesso a informação ou a revistas. Tentei que fosse, em igual medida, uma playlist muito pessoal e um espelho das culturas que queria honrar. E nesse sentido, inevitavelmente, acaba por ser também muito americana e muito inglesa, porque o clubbing bateu aí, e é limitada no tempo a um período da minha história quase de pré-aceitação da inevitabilidade de ter de incluir África na conversa.
Foi algo que reparei. Para quem conhece os teus discos, sente-se essa ausência da música de Angola ou do Congo, por exemplo.
Eu podia ter forçado isso, principalmente nos momentos em que falo da minha tia e da minha infância. Talvez fosse um exercício mais esperado, o de ir agarrar na minha história depois desta que aqui conto, para falar de histórias de festivais, de pôr música para não sei quantas mil pessoas, do Boiler Room, da ideia de Lisboa que existe agora, com beats da Príncipe e da Enchufada que iam rebentar com toda a gente. Ainda posso vir a fazer isso, mas seria estranho começar por aí. Talvez fosse o mais eficaz comercialmente, mas esta é uma expressão tão pessoal que eu achei que tinha de contar um momento da história em que a identidade ainda não é tão clara para muitos de nós. Um momento em que essas lutas todas também ainda não são tão óbvias. Já era o pós-25 de Abril, mas ainda não era este momento. A história deste espetáculo também ajuda a validar tentativas falhadas, lembrar que alguns clubes em Lisboa estavam atualizados com o que se passava lá fora, mas outros eram só pequenas versões. Que a música africana existia apenas nas discotecas africanas. Que a música de dança não incluía essa herança africana de uma forma conhecedora. Eu acho interessante, quando junto vinis, perceber que nós partimos daí. Lembrar que nós descobrimos os samples de Manu Dibango e só depois é que veio o Manu Dibango. E só depois é que percebemos que não há diferenças entre o Manu Dibango e o Bonga — ou que até é mais normal estares mais próximo do Bonga, do que do Manu Dibango. E que se calhar não tem de ser via Fela Kuti, podemos chegar lá por via do David Zé. Então sim, há uma tentativa de retratar um período menos sexy, mas que existiu, e que é a base de onde estamos agora, por ter acertado em algumas coisas e ter falhado redondamente noutras. Mas mais do que estar a reescrever a história de um ponto de vista ideal, é tentar olhar para ela e ver como é que ela não acertou, quando é que estava dissonante ou em harmonia. E através dessa construção imperfeita, perceber como chegámos aqui e aceitar que, também neste momento, vão existir imperfeições.
Lançaste o Neon Colonialismo em 2022, que tem feito o seu caminho ao vivo. Essa digressão continua em 2025? E em relação a projetos? Agora estás com esta peça em cena e tens feito várias participações como DJ. Que passos projetas para o futuro?
Agora estou focado na peça, que vai ser exibida no Lux, e a ambição é que possa ser exibida mais vezes pelo país. Estamos a trabalhar para isso e estamos expectantes que isso possa acontecer. A parte do DJ vou continuar a estar muito disponível também. Continuo a achar que é uma forma eficaz de comunicar, é algo em que tive experiência ao longo da vida e há muitas formas de o fazer agora, com vinil e digital, mais e menos performativo, com ou sem vídeo. Continua a ser algo que me estimula. Também continuamos a ter pedidos para o espetáculo que fiz com o Bonga. Era para ter acontecido só no encerramento do Iminente, mas há pessoas que gostavam de o ver repetido e nós temos gostado de o fazer. Além disso, quero continuar o caminho com o Neon Colonialismo, com mais datas dentro e fora do país. Em relação a novos trabalhos, tenho uma série de músicas guardadas para um próximo passo e algumas ideias que já estão a acontecer na minha cabeça. Tenho sido estimulado por coisas muito diferentes e o Carnaval tem-me marcado bastante, o do Recife, do Alentejo, no Norte do país, em Barranquilla na Colômbia, em Notting Hill em Londres, em Cape Town. Esses são sítios onde eu tenho ido e abrem-se uma série de possibilidades que estou a explorar. Na minha cabeça já estão a existir muitas coisas, não sei o que vai sair, nem quando, mas vai sair naturalmente. No imediato, o mais importante para mim é encher a sala do Lux. Há muito tempo que queria fazer isto. Eu respeito muito aquele espaço arquitetónico, sempre vi aquela sala como uma sala multidisciplinar, mas nunca senti que tivesse a ideia certa para lá chegar. Agora sinto que tenho e gostava que a sala estivesse cheia. Mais do que likes em publicações, para mim é importante colocar pessoas numa sala para que exista essa possibilidade de suar, de temperatura e de partilha.