Pontos-de-Vista

Alexandre Ribeiro

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De fora para dentro.

As cores que se revelam lá no fundo

Do The Right Thing, filme de Spike Lee, é essencial por várias razões, mas foquemo-nos num diálogo entre Mookie, personagem interpretado pelo próprio realizador, e Pino (o actor John Turturro é quem veste a pele deste italo-americano), em que o primeiro confronta o segundo sobre a sua seletividade na hora de ser racista, usando um pequeno jogo rápido de pergunta-resposta para o apanhar na sua própria hipocrisia: afinal de contas, como é que se podia odiar tanto pessoas de pele negra e dizer, ao mesmo tempo, que os seus maiores ídolos são Magic Johnson, Eddie Murphy e Prince?

A resposta de Pino (em que fala daqueles ilustres como “mais do que negros”) à lógica argumentativa do entregador de pizzas é um sintoma daquilo que ele não fez: pensar no seu preconceito e metê-lo em perspectiva com recurso às suas referências, usando o mais elementar dos exercícios para desconstruir esse racismo que vai extravasando aqui e ali na longa-metragem. É aqui que entra o tipo de estúpido-transformado-em-burro que alimenta a sua ilusão de superioridade com base em estereótipos que encontram pouco (e, por vezes, nenhum) fundamento na realidade, fazendo de qualquer assunto um exercício de “até onde é que posso ir com esta mesquinhice que não me permite pensar, mas sim ganhar uma conversa pela exaustão do outro lado?”

E se há racismo aberto e sem filtros (daquele que é propagado e utilizado por uns quantos indíviduos sem espinha dorsal para criar uma divisão entre “nós e eles” e “os de bem e os de mal”), há um outro mais subtil que se faz de micro-agressões que acabam por, juntas, fazer-se um monstro que retarda a formação de uma sociedade realmente baseada em valores como a igualdade, onde a compreensão sobre o lugar que cada um ocupa nesta sociedade parte de um ponto-de-vista comunitário e não de uma visão individualista e hiper-centralizada nos seus próprios interesses; onde se entende realmente o porquê de existir a necessidade de celebrar Cláudio Bento França, de reagir com força a uma Soul branca e de suportar, continuamente, vozes como as de Joacine Katar Moreira ou Mamadou Ba. 

Raquel Lima, poeta, performer e doutoranda do Programa Pós-Colonialismos e Cidadania Global do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, fala sobre isso mesmo na reportagem do Gerador “Representatividade Negra nas Artes Performativas – Antes, Durante e Depois do Soul”, da autoria de Filipa Bossuet: “Acredito que essa disparidade se deve ao não-reconhecimento das continuidades históricas que permeiam a escassez de pessoas negras no espaço público, ou seja, ao não reconhecimento do racismo enquanto mecanismo de opressão estrutural, institucional e histórica que impede, na prática, que minorias sociais sejam representadas na política, na televisão, em novelas, filmes, no jornalismo, nos cargos de maior poder e prestígio social.”

Na música, até pode parecer diferente quando se olha de uma maneira mais superficial (basta vermos o sucesso comercial de nomes como Wet Bed Gang, Plutonio ou Julinho KSD), mas a verdade é outra: quando olhamos para grande parte da moribunda imprensa musical portuguesa, por exemplo, estes artistas parecem viver numa marginalidade e num anonimato que são, no mínimo, estranhos, ainda para mais quando se afirmam como forças populares que criam ramificações não só dentro do género a que os associamos, como também fora. 



No entanto, o que não deixa de ser curioso é que os dois últimos momentos de celebração da passagem de talento nacional para os escaparates internacionais, mais concretamente para o A COLORS SHOW, vieram de dois portugueses descendentes de cabo-verdianos. Dino D’Santiago e Nenny, duas figuras importantes para se perceber de onde viemos e como chegámos aqui: o primeiro, dono de uma carreira longa, mas com real impacto a solo a partir de Mundu Nôbu (2018), teve de navegar as difíceis águas do panorama português até que todo o seu árduo trabalho culminasse na tempestade perfeita que teve como pontos fulcrais um cruzamento de caminhos com a antiga rainha da pop Madonna e a definição de um som afro-lisboeta como provavelmente nunca existira até aí. A segunda, um enorme talento com um potencial gigante, embalou-se na estratégia independente dos seus “padrinhos” de Vialonga e construiu um início de carreira sólido que provavelmente lhe permitirá progredir rapidamente a um lugar de destaque na pirâmide pop nacional. 

Ambos representam algo diferente para as suas gerações. A Dino não ficaria mal a descrição “the hardest working [portuguese] man in show business”, alguém que se superou (e às expectativas que se poderiam ter em relação a alguém que veio do Bairro dos Pescadores, em Quarteira) e que conquistou a pulso um merecido lugar de destaque. A Marlene Tavares serve-lhe a “carapuça” de ser a cara de um futuro com mais representação feminina e negra na música portuguesa, uma bomba de oxigénio para as meninas que crescem a ver alguém como elas a virar tudo do avesso. 

Para um país que “ainda precisa [de] se curar do colonialismo e do fascismo”, este tipo de representação não só é importante como também é crucial para a caminhada para uma sociedade mais justa, e compreender o que une estes dois artistas de idades díspares é uma maneira de interpretar a evolução de um grupo de pessoas que luta por um lugar de fala num território que lhes mete entraves sem que seja preciso dar passos em falso — basta existirem como são para que isso aconteça. 

Por isso mesmo, a ida de afrodescendentes (em particular a de Nenny, lançada um dia depois das eleições presidenciais deste ano) a um programa como aquele que assina o COLORS é, sem que o seja preciso assumir, mais uma acção política e progressiva que serve a ideia de que é preciso continuar na luta (algo recentemente reiterado por outros dois avançados pensadores musicais da nossa praça, Chullage e Tristany) para tratar das “mazelas do colonialismo” que, volta e meia, nos assombram por nunca terem sido realmente resolvidas e retratadas. E abraçar-se ainda as apresentações de cantoras dos PALOP como Mayra Andrade (Cabo Verde) e Carla Prata (Angola) podem (e devem) ser encarados como sinais positivos de uma mentalidade que se espera mais aberta e receptiva com a passagem do tempo e o afastamento de hábitos de outros tempos menos democráticos. 

Ninguém aqui quer estragar a festa: é uma vitória tremenda termos Dino e Nenny, em crioulo e em português, a provarem que são tão valiosos como o fado o é, por exemplo. Reflexos e expressões de um Portugal multicultural, diversificado e refinado que não precisa de ser fetichizado pelo seu lado exótico para furar. Quando se desliga a música e se apagam as luzes, as cores e os sons continuam a ser os mesmos. 


Ilustração por Rita Magdala

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