LP / CD / Cassete / Digital

Armand Hammer

Shrines

Backwoodz Studioz / 2020

Texto de Gonçalo Oliveira

Publicado a: 20/07/2020

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Passaram-se dois anos desde o último encontro de ELUCID e billy woods em Armand Hammer. A verdade? Nem demos pelas páginas arrancadas do calendário. Paraffin elevou em definitivo a dupla nova-iorquina ao estatuto de culto, numa altura em que Known Unknowns, Shit Don’t Rhyme No More e No Edge Ups In Uganda ainda eram obras (a solo) frescas que situavam a paranóia dos dois MCs no cenário musical ideal, um círculo de tensão e assombro delineado por chamas que apertam o cerco a cada linha medíocre captada pelo microfone. Ainda cá estão para contar a história e a escrita de ambos saiu a ganhar do ritual, especialmente a de woods, que aproveitou o topo de forma para carimbar 2019 com dois dos melhores LPs de rap do ano, Terror Management e Hiding Places, este último ao lado de Kenny Segal.

Geograficamente, Paraffin é um produto claro daquela Nova Iorque irreverente do início dos 2000s: segue à risca os manuscritos que sobraram da extinção precoce da Def Jux, editora que operava numa órbita coincidente à da Backwoodz Studioz, o selo alternativo pelo qual billy edita o seu material, e que veio até a dar abrigo a gente como Blockhead ou Vordul Mega (dos Cannibal Ox) quando a máquina alimentada por El-P ruiu. Já este novo Shrines é mais abrangente no que toca à estética que envolve os instrumentais e aumenta ligeiramente o grau de experimentação entre os flows, as cadências ou até a própria colocação vocal, capaz de ir buscar influências do movimento Anticon à costa oposta à sua.

Como em qualquer álbum assinado por mestres de cerimónias desta casta, o factor “choque” está sempre latente. ELUCID e woods não vestem a pele de quem está mais “desperto” do que o ouvinte mas constatam verdades duras e óbvias a poucos centímetros da nossa cara através de um filtro peculiar, feito de referências literárias arrojadas, expressões ou palavras exóticas, doutrinas filosóficas e religiosas ou questões económicas, sociais e raciais. Montadas em esquemas pouco comuns, auxiliados pela tal arrogância em desrespeitar os tempos marcados pelo beat, as rimas da dupla fazem de Shrines um espectáculo ambulante de malabarismo e ilusionismo, durante o qual os dois performers se esforçam no limite para obter o máximo de coroas como gratificação de quem parou para assistir. Dar o litro funciona? Que o diga a velocidade com que as edições desta malta no formato físico esgotam por natureza.

Escusado será dizer que é inerente a qualquer seguidor deste nicho sonhar em vê-los todos num mesmo alinhamento. E até isso Shrines se esforça para nos dar. Pink Siifu, Quelle Chris ou R.A.P. Ferreira seguem a fórmula Armand Hammer e inovam na forma como declamam os seus poemas. E claro, real recognize real: billy woods e Earl Sweatshirt trocam versos pela primeira vez em “Ramesses II”, depois de confessarem a admiração um pelo outro em entrevistas recentes.

O sucessor de Paraffin tem ainda a particularidade de se esconder atrás de uma capa à primeira vista enigmática, que nos é decifrada logo entre as primeiras faixas do LP. O tigre Ming, prestes a ser abatido por um agente da NYPD, é uma lenda urbana do bairro de Harlem, em Nova Iorque. No final do tema “Pommelhorse” podemos ouvir um excerto de uma entrevista de Antoine Yates, dono do felino, que explica a ideia de querer ter tido um zoo em casa para poder escapar das armas e drogas que circulam nas ruas.

Pode parecer loucura pelo toque de humor negro adjacente à história mas há também um lado nobre neste acto, que certamente agradou os dois rappers ao ponto de o escolherem como ponto de partida para as ideias esbatidas neste Shrines. E o seu placement no alinhamento também parece propositado, já que antecede o momento alto do disco, curiosamente a faixa em que o par veste a pele de um outro felino: “Leopards” é a canção mais bem conseguida desta fornada, um blues rock em decadência no qual woods protagoniza uma das entradas mais brilhantes dos últimos tempos. Da piada inicial “Turned Jehovah’s Witness on Christmas” até chegar ao confronto físico que acaba em fantasia macabra (“It’s more than a few ways to skin cats/ Pelts drape, drip dripping, we wore the skulls as a mask”), o head honcho da Backwoodz Studioz tem ainda espaço de manobra para registar o momento mais catchy do álbum (“It takes blood to be a man/ Blood in, blood on your hands/ Blood on the leaves, blood trails where they ran” conjuga na perfeição com os acordes rasgados da guitarra). Depois do convidado Nosaj frisar a selvajaria das ruas que circula no sangue do trio no refrão, ELUCID não baixou a fasquia e manteve o leopardo a galgar mais algum terreno com uma terapia de sarcasmo e algum cinismo à mistura, não saindo sem se despedir de quem organizou a caçada daquela noite com um “Performative rebel rhetoric, but the beat’s incredible.”


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