O programa “New Deal of Arts and Democracy“, com a curadoria do encenador Harris Pašović, que entre os dias 14 e 16 de Junho tem como ponto de encontro Aveiro — capital portuguesa da cultura em 2024 —, teve palco de abertura para o poeta, novelista e músico Anthony Joseph. Joseph é tido como timoneiro da chamada black avant-garde britânica, muito considerado pela sua prolífica e multifacetada dimensão artística. A par seguem as contribuições que tem dado à estampa, com oito livros e outros tantos discos, dos que se contam por últimos — e muito recomendáveis — Sonnets for Albert, pela Bloomsbury em 2022 e The Rich Are Only Defeated When Running for Their Lives, longa duração lançado em 2021 pela Heavenly Sweetness.
Em palco revela que no Outono podemos contar com o próximo registo discográfico, a saber: Rowing Upriver to Get Our Names Back. O que será à partida um disco com mais um título sonante e aforístico. Um certo remar contra a maré é talvez uma das maiores capacidades criativas deste mago da palavra, e como no fecho da entrevista ao ReB — antecipando o concerto no Aveirense — rematou: “Parte da responsabilidade de se ser um poeta negro é a de termos de carregar aquele peso de… Temos de ter o impulso revolucionário. Caso contrário… Temos tantas coisas apontadas contra nós, sabe? Estamos inseridos num sistema que não foi construído para nós, então não temos escolha.” A nossa escolha passa por ler e ouvir com entusiasmo — justamente — o que tem Joseph a revelar. Nesta vinda a palco até se faz acompanhar de galhardos músicos, alguns dos que corporizam o elenco de relevo que gravou o último disco. A linha mestre do ritmo e tempo está assegurada por Rod Youngs na bateria e Andrew John no baixo, dois músicos de sempre para Joseph. As diatribes instrumentais, entre guitarra e o saxofone tenor entregues a Thibaut Remy e Colin Webster. O quinteto de vanguarda teve aos comados do teclado Renato Paris, figura estreante do naipe de artistas de Joseph mas nem por isso menos espantoso.
O timoneiro que a dado momento elogia os instrumentistas dizendo que tocam como uma banda de heavy metal na coesão — e são inquebráveis e atractivos como uma barra de metal luzente, acrescentamos pelo que testemunhámos de uma música não menos fulgurante que as palavras ditas em “Swing Praxis”. A mensagem desta arte é clara para onde aponta e transcendente no legado que transporta. Para Joseph: “A palavra é uma ferramenta que não deve ser usada de forma maliciosa. Eu gosto de contar as verdades, mas não gosto de magoar ninguém. Mas isto sou eu.” E por isso é artífice, no uso da poesia musicada, que o reivindicativo tema “Calling England Home” atesta no modo, como pergunta com retórica: “I was flung so far from any notion of nation / How long do you have to live in a place / Before you can call it / ‘Home?'”. Sábia e hábil forma de abordar a imigração — na primeira pessoa — nos caldeirões culturais que se tornaram as nações de hoje. Podemos experimentar a sonoridade que virá contida no próximo disco e que desvelam logo no segundo tema apresentado numa toada dub, onde o baixo de Andrew se materializa pendular e assertivo para os restantes músicos, num tema em que o poeta assume a veneração materna e as origens culturais. A primazia do léxico utilizado — ancestralidade, verdade universal em visão poética do real — como quando em “Language (Poem for Anthony McNeill)”, o longo tema e ponto charneira do concerto, onde a poética encontrou igual e desmedida criatividade sónica, as palavras rendem homenagem a uns dos progenitores poetas caribenhos, onde revela o poder da palavra: “Yeah / It is language which calls all things to creation and language is the origin of the world / The word was the great mass of a black star exploding / It was the beat of a drum / The vibration of the body was to bear the boom, the thrust into breath, and breath into fire”. Tema que nos aproxima de uma poética beat, de Ginsberg a Ferlinghetti, na vanguarda de então, a vida na esteira do jazz e na liberdade das palavras, a forma como medida do acontecer, do movimento impulsivo.
Voltando à entrevista concedida, Rui Miguel Abreu viu de pronto o colecionador de discos que é Joseph, que no concerto assume com o retratar de uma cidade até aqui desconhecida, a que se chega e se mede pela loja de discos a que se vai. Nesta, como em tantas outras cidades entre nós, as lojas de música tornaram-se escassas, mas Joseph desta passagem leva um disco do saxofonista Billy Harper para as suas estantes vindo da loja que por aqui sabia existir. O mais que necessário para medir com boa memória o pulso à cidade. Na volta ao alinhamento do concerto que haveria de revelar um tema mais do novo álbum, num “Satellite” onde Webster deixa o tenor para assumir os comandos absolutamente cósmicos da música num pequeno, mas bem artilhado teclado, como prenúncio de um novo capítulo de afrofuturismo na música de Joseph.
Para o final haveria de estar alinhado um dos temas chave que é “Maka Dimweh” da obra The Rich Are Only Defeated When Running for Their Lives, que conta a história do soldado enviado à Guiana para limpar o pós-massacre de Jonestown, a maleita seita de Jim Jones em 1978. A música é feita de diatribes, que arrancam desde uma palheta vociferante que passa às cordas da guitarra, qual furacão torneante em que se torna a revolução sónica deste quinteto junto ao mestre da palavra Anthony Joseph. Uma ovação final, tão prolongada quanto merecida, fê-los voltar para um tema extra, uma revelação mais — num total de três — do disco provir. “Tony”, que rende homenagem ao fundamental músico percussionista e alma maior do ritmo africano Tony Allen. Afinal, os artistas fundamentais andam todos ligados, continuam aos ombros uns dos outros — e ainda bem que assim é.