Não é todos os dias que um festival tem a oportunidade de assinalar 25 edições. Este é um dos eventos que dão um novo alento à ilha Terceira por alturas do arranque do Outono, e em 2024 a coisa ganhou a dimensão saudosista que leva a recordar tudo aquilo que se tem feito desde a estreia do certame em 1999. Uma breve vista de olhos pelos vários cartazes dá para perceber a importância do AngraJazz no circuito do jazz nacional, que conseguiu trazer até aos Açores nomes como John Scofield, Dave Holland, Herbie Hancock, William Parker, Cécile McLorin Salvant, Gregory Porter, Immanuel Wilkins ou Samara Joy. “Asas servem para voar”, dizia-nos a canção dos GNR, e o AngraJazz tem sido uma autêntica ave exótica capaz de levar as tonalidades mais tradicionais do azul até bom porto, próximas das gentes desse paraíso que é a ilha açoriana.
Quem também ganhou asas para levantar voo foram os músicos que que se apresentaram no derradeiro dia desta grande celebração do jazz. Os primeiros foram Ricardo Toscano, o seu quarteto e um adicional ensemble de sopros e cordas que os acompanharam para uma prestação especial. Ganharam asas, primeiro porque este era um sonho antigo do saxofonista português, conforme nos revelou em cima do palco, depois porque, afinal de contas, estamos a falar de um repertório imortalizado por Charlie Parker, também conhecido como “Bird”, um músico lendário que quis cruzar a linguagem livre do jazz com a beleza dos arranjos da música clássica em Charlie Parker With Strings. Depois da estreia deste formato no ano passado, no âmbito do 30º aniversário da Culturgest, a ideia voou até aos Açores para se voltar a materializar no AngraJazz.
É praticamente impossível escutar os sopros de Toscano sem se notarem os traços daquele que foi um dos grandes mestres do saxofone. É uma opinião unânime que pudemos comprovar logo no primeiro dia do festival, quando, de madrugada, o apanhámos numa jam session em que participou também Domo Branch, o baterista que acompanhou Catherine Russell. No final da desbunda, numa breve troca de impressões com o norte-americano, este notava também que o calibre do português é equiparável àquele que Parker exibia, e rapidamente reagiu com um “faz todo o sentido” quando lhe contámos que a prestação de Toscano no AngraJazz seria precisamente em torno de repertório imortalizado pelo lendário saxofonista.
No paraíso que é o arquipélago dos Açores, Ricardo Toscano foi um pássaro gracioso que sobrevoou a camada de nuvens formada pelos sons de João Pedro Coelho (piano), Romeu Tristão (contrabaixo), João Pereira (bateria), Elena Kharambura (violino), Ana Cristina Pinto (violino), Victor Falcão (violino), Gabriel Pereira (violino), Laura Meneses (violino), Ostap Kharambura (viola), José João Silva (viola), Orest Grytsyuk (violoncelo), Svitlana Pustovhar (violoncelo), Tiago Gaspar Marques (oboé) e Edgar Marques (trompa), num fusão entre o Ricardo Toscano Quarteto e o Ensemble AH, aqui com a direcção do maestro Pedro Moreira.
Entre acelerados bateres de asas e outros mais vagarosos, o alado saxofone do músico português percorreu muitos dos standards que se encontram encapsulados no clássico disco gravado entre 1949 e 1950, replicando na perfeição a subtileza de Bird no precioso instrumento de latão, indo de “Just Friends” a “Summertime”, esta última a peça mais icónica do alinhamento de Charlie Parker With Strings que, obviamente, colocou grande parte do público a acompanhar em murmúrios melodiosos. Foi um momento bonito de se ver e escutar, bem como mais uma importante pedra colocada nos pilares da história do certame açoriano, que vê assim o seu percurso a coincidir, de alguma forma, com o do eterno Charlie Parker.
Para o derradeiro acto do AngraJazz’24, estava marcado o Ulysses Owens Jr’s Generation Y. O baterista de Jacksonville, Florida, acabou, no entanto, por não poder comparecer, mas usou o seu estatuto de responsável pela Secção de Pequenos Grupos na prestigiada Juilliard School para curar ele próprio o o conjunto de músicos que mais garantias davam para fazer a sua vez na ilha Terceira. O baterista Charles Goold foi o escolhido para liderar um quarteto norte-americano onde couberam ainda Anthony Hervey (trompete), Tyler Bullock (piano) e Thomas Milovac (contrabaixo), ao qual se juntou ainda o renomado saxofonista italiano Francesco Cafiso. Como acto simbólico da participação naquele que foi o 25º AngraJazz, o grupo apresentou-se com o nome de AngraJazz Legacy Quintet, naquela que foi uma homenagem à bonita história que este evento tem criado no panorama jazz nacional.
Diz-se que há males que vêm por bem, e foi precisamente esse o caso no último concerto desta edição do festival. Apesar de se tratarem todos eles de jovens instrumentistas, os músicos escolhidos por Ulysses Owens Jr impressionaram (e de que maneira) em palco. O baterismo de Charles Goold vai a todo o lado e os membros do seu corpo desdobram-se ao ponto de parecer que tem, para aí, mais um par de braços e pernas do que é suposto, indo ainda buscar referências às suas origens latinas. Anthony Hervey foi ultra-competente no trompete, exibindo fluidez nos fraseados e uma técnica bem apurada. Esperemos que não conduza um carro da mesma forma, mas ao volante do piano, Tyler Bullock vira para qualquer melodia e harmonia sem precisar de olhar para a estrada de teclas brancas e negras, como se as suas mãos tivesse vida própria — parecia muitas vezes um suricata, sempre de cabeça erguida a observar cada um dos colegas. Francesco Cafiso fez toda a justiça à beleza do saxofone que já tínhamos escutado naquela noite antes de si, mostrando uma total destreza no interligar de cada nota, também ele a fazer lembrar o harmonioso som de Bird. E o que dizer de Thomas Milovac? Foi das suas mãos que sairam os graves mais límpidos de todo o festival, num irrepreensível manuseio das cordas do contrabaixo, fosse a acompanhar os colegas ou nos seus arrojados solos.
Entre o bebop e o post-bop, o AngraJazz Legacy Quintet navegou por composições originais trazidas para o palco por quase todos os seus membros, passando ainda por um par de covers, ao longo de quase duas horas de concerto. Excluindo Francesco Cafiso desta equação — o italiano tem já larga obra editada em selos como, por exemplo, a Verve Records —, assistimos a um verdadeiro levantar voo de quatro músicos sobre os quais nenhum de nós tinha quaisquer referências — havia até, se calhar, mais reticências do que certezas quanto ao espectáculo de encerramento. Foi uma enorme boa surpresa para os presentes e mais um carimbo para a caderneta do AngraJazz, que daqui a uns anos, mal estes artistas comecem a dar cartas no circuito, se vai poder gabar de lhes ter dado palco numa altura em que ainda ninguém ouvia falar deles.
À 25ª edição, o festival açoriano só deixou bons indícios para o presumível largo percurso que ainda tem pela frente. O AngraJazz pode até nem estar a jogar num campeonato em que se discute a vanguarda sonora daquilo que o jazz oferece nos dias de hoje, mas o seu instinto curatorial para ir buscar os melhores e mais entusiasmantes nomes a operar nos domínios mais tradicionais do género é infalível. Em 2025, o certame já reservou as datas de 2, 3 e 4 de Outubro para regressar ao Centro Cultural e de Congressos de Angra do Heroísmo. Venha daí mais uma nova aventura pela ilha Terceira.