O tempo passa mais devagar nos Açores. Há qualquer coisa na sua beleza natural e no clima húmido que nos faz desacelerar. Na ilha Terceira, mais concretamente em Angra do Heroísmo, nem parece que está a decorrer um dos mais emblemáticos festivais de jazz do país, tal é a calma que se sente ao longo dos dias e, principalmente, à noite, quando não se vê praticamente vivalma pelas ruas. É preciso ir ao epicentro deste tremor de terra que é o AngraJazz, no Centro Cultural e de Congressos, para nos darmos realmente conta de que aqui também há muita vida — e em tons de azul. As gentes locais aperaltam-se e há quem, como nós, venha de fora para se misturar por entre a leveza da povoação. Algo vibra aqui para além das placas tectónicas, tudo isso graças à força que a música tem para mover as massas. Ao segundo dia do festival insular, a sala de espetáculos fez-se praticamente lotada para receber talentos nacionais e internacionais de uma das correntes artísticas mais ancestrais do último século. No final, todos nos levantamos dos lugares para aplaudir de pé, sinal de que o jazz está bem vivo e com a força necessária para continuar a ser uma linguagem relevante ao longo de muitas mais gerações.
E não há nada melhor do que arrancar um serão ao som de um espectáculo que quase sabe a inédito, dada a sua raridade, e logo envolvendo dois grandes mestres do piano da esfera nacional. Mário Laginha e João Paulo Esteves da Silva colaboram há largos anos — há mais de três décadas — em diferentes projectos, tocam composições um do outro e nutrem um respeito mútuo pelo trabalho de cada um, eles que se foram agigantando ao leme do emblemático instrumento de teclas, martelos e cortas desde os anos 90 e criando uma reputação que extravasa os domínios nacionais. Chegaram até a assumir um dueto, que segundo nos revelou Esteves da Silva durante o almoço de ontem, 3 de Outubro, resultou num disco que nunca viu a luz do dia e em pontuais aparições em palcos, a última das quais já remonta há mais de 20 anos.
A orgaização do AngraJazz foi ousada ao desafiá-los a reactivar este combo a quatro mãos, inscrevendo assim mais um belo pedaço de história no seu longo trajecto. Foi sob uma grande ovação que os dois músicos entraram em cena e, antes de se sentarem num frente a frente, ensaiaram as primeiras notas fazendo uso às tampas abertas, percutindo as cordas com as mãos. Era a introdução de “Samba Leve”, uma composição inédita de João Paulo Esteves da Silva, que os levou a sentarem-se de seguida para tocarem os respectivos pianos da forma tradicional, fazendo recurso total da sua imcomparável técnica e precisão de dedos naquele que foi um belo diálogo musical de cerca de uma hora. Pode até parecer estranha a ideia de que uma formação dentro destes moldes — sem uma bateria ou um baixo — consiga groovar e fazer-nos dançar nas nossas cadeiras, mas os dois pianistas sabem bem como espremer o lado percutivo daquele que é um dos instrumentos mais clássicos e completos da história da arte que se expressa através do som.
O tempo que passou desde que colocaram este dueto num hiato não se fez sentir na sinergia em palco. João Paulo Esteves da Silva e Mário Laginha estiveram sempre cirurgicamente coordenados, como as engrenagens de um relógio suíço, fosse a tocar as mesmas notas em conjunto, a completar os fraseados um do outro quando a música pedia duas vozes ou a segurar as bases rítmicas e harmónicas quando chegava a altura de um deles solar. Revelando algumas histórias dos temas que interpretaram pelo meio, a dupla recorreu, sobretudo, a composições originais — de “Adeus América” e “Certeza” (ao qual Laginha se referiu como sendo o “grande standard do jazz português), ambos de Esteves da Silva, até “Jaamm Rek” e “Fado Choro”, que levam a assinatura de Laginha —, tendo também recriado o clássico “Mack the Knife” e a canção tradicional açoriana “Olhos Negros”. Perante uma enorme onda de aplausos à despedida, os músicos regressariam ao palco para devolver o apreço com mais um tema.
Depois de termos sido embalados pela beleza dos dois pianos, estava estabelecida uma fasquia bem alta para a segunda e última apresentação da noite. Esse momento estava reservado ao quarteto liderado por Catherine Russell, premiada cantora de Nova Iorque que se iniciou enquanto vocalista secundária em inúmeros projectos — acompanhou, por exemplo, gente como Madonna, David Bowie ou Cyndi Lauper em estúdio e em palco — cuja carreira a solo despontou apenas após a viragem para o presente milénio. A idade, 68 anos, causava algum receio quanto àquela que poderia ser a sua prestação em cima do palco, mas bastou soltar a primeira nota para nos fazer perceber que estávamos perante alguém com um conjunto de cordas vocais seguríssimo e do mais afinado que se escuta por aí. Filha de dois músicos — Luis Russell e Carline Ray, a quem pediu emprestado um par de temas para este concerto —, não nos espanta o porquê de Catherine Russell ser uma das vozes mais aclamadas do jazz da actualidade, mas não deixamos de sentir que a sua performance é uma autêntica viagem ao passado numa máquina do tempo.
Esta ideia da música trazida pela cantora ser algo datada não tem, no entanto, de ser algo obrigatoriamente mau. Apesar de termos as antenas mais orientadas para frente do que para trás, não há como ignorar uma performance quando esta roça o irreprensível. As canções traziadas para o AngraJazz são antiquíssimas, todas elas criadas entre as décadas de 1930 e 1950, mas a artista em evidência e os músicos que a acompanham interpretam-nas com altos índices técnicos e uma sensibilidade que nos leva mesmo a crer que, por momentos, nos sentámos num qualquer bar de jazz de outros tempos a escutar um daqueles nomes consagrados que sabemos que nunca teremos a oportunidade de ver ao vivo. Partindo sempre das composições de outros artistas, Russell explica-nos que gosta de ir aos arquivos “desenterrar” um tipo de peças que, na grande maioria das vezes, passam despercebidas do público. Nat King Cole, Billie Holiday, Ray Charles, Count Basie e Hot Lips Page foram alguns dos mais agigantados compositores que revisitou na segunda noite do AngraJazz, não se deixando limitar por criativos da esfera jazz e indo também buscar matéria prima aos campos da country e do R&B, em torno das quais depois esculpiu verdadeiros monumentos sonoros mais à imagem do seu tipo de som.
Roy Dunlap foi o pianista de serviço e foi sempre incansável na magia que espalhou pelas teclas na sua função de edificar o sistema harmónico de cada faixa, embora nem sempre soasse igualmente genial quando era chamado para solar. No contrabaixo, os dedos de Tal Ronen eram como pulgas saltitonas a groovar sobre as cordas metálicas, aplicando uma camada adicional de ritmo, esquivando-se da monotonia de ser um mero acompanhante e participando muito activamente na criação da paisagem musical que tinhamos diante nós. A grande surpresa foi o “caçula” da banda, Domo Branch, alguém que parecia tratar a bateria como se uma extensão do seu corpo de tratasse, mostrando ainda ser o mais tecnicista de todos os presentes, conseguindo arrancar toda uma panóplia de diferentes sons a partir de cada elemento do seu kit — e aqui até actuou limitado pela estética do jazz de Catherine Russell, pois na noite anterior tínhamos testemunhado o verdadeiro leão que há em si quando voou livre numa jam session que decorreu num bar nas redondezas.
A aventura continua hoje com dois projectos internacionais: Vijay Iyer Trio e Ben Rosenblum Nebula Project.