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Fotografia: Rui Caria
Publicado a: 03/10/2024

Arranque em grande de uma edição especial com concertos da Orquestra Angrajazz e do quarteto de Camilla George.

AngraJazz’24 — Dia 1: d’aquém e d’além-mar

Fotografia: Rui Caria
Publicado a: 03/10/2024

Começou ontem, 2 de outubro, uma nova edição do AngraJazz – Festival Internacional de Jazz de Angra do Heroísmo, um histórico certame português que este ano celebra a sua vigésima quinta edição. Organizado anualmente na ilha Terceira desde 1999, o festival transforma o auditório semi-circular do Centro Cultural e de Congressos de Angra do Heroísmo num grande clube de jazz no meio do Atlântico. Ao longo das suas edições, tem recebido nomes maiores do jazz português, europeu e norte-americano, estabelecendo uma importante ponte transatlântica, fundamental para unir a música de vários continentes. Os números apresentados no guia do festival são impressionantes: no AngraJazz já aconteceram 161 concertos e por lá já passaram 710 músicos, dos quais 223 são portugueses (105 açorianos) e 487 estrangeiros. Dados reveladores de uma longevidade e vitalidade que não podem senão ser enaltecidas.

Por se tratar de uma edição especial de vinte e cinco anos, o festival conta em 2024 com mais um dia do que o normal. Além dos habituais concertos no auditório, está a decorrer paralelamente o Jazz na Rua, que leva o jazz e a música improvisada a toda a população da cidade de Angra do Heroísmo. No contexto desta iniciativa, assistimos a um concerto do Wave Jazz Ensemble na Praça Velha (29 de setembro), em que o quinteto apresentou interessantes arranjos de standards, proporcionando um agradável fim de tarde conduzido por talentos locais.

No dia 1 de outubro, o quarteto liderado pelo saxofonista alto Ricardo Toscano encheu o largo à frente da Pastelaria Central, oferecendo um concerto que evidenciou a excelente forma do grupo. O saxofone de Toscano continua a destacar-se como uma das grandes vozes do jazz contemporâneo; os solos de João Pereira, depurados à essência do ritmo, foram uma verdadeira lição de bom gosto; o contrabaixo de Romeu Tristão, irrequieto e mordaz, revelou-se uma força vulcânica; e o pianismo de João Pedro Coelho — cujo último disco, Crónicas, tem sido amplamente elogiado em conversas nos últimos dias e merece aqui a nossa recomendação — constituiu uma surpresa sublime.

Para culminar, as noites têm sido preenchidas por jam sessions na Casa do Sal, que se tem tornado um palco de encontros efusivos, reunindo músicos das várias formações que integram o cartaz do festival.

[O papel do swing na construção do belo]

Coube à Orquestra AngraJazz a honra de abrir a vigésima quinta edição do festival. Prata da casa para celebrar as bodas de prata — tudo em harmonia. “A menina dos olhos” da Associação Cultural AngraJazz, como orgulhosamente destacou José Ribeiro Pinto, membro da direção da associação, no discurso de abertura, foi formada em 2002 sob a direção musical de Pedro Moreira e Claus Nymark. Desde então, a orquestra tem funcionado como uma verdadeira “escola de jazz” nos Açores, responsável por formar e aperfeiçoar várias gerações de músicos do arquipélago na linguagem jazzística.

Numa noite repleta de emoções, sob a batuta do maestro Pedro Moreira, que sabiamente conduziu a orquestra e entreteve exemplarmente o público com histórias e curiosidades sobre o repertório apresentado, a Orquestra AngraJazz relembrou uma verdade amiúde esquecida: o papel que o swing pode ter na construção do belo. Acompanhada pelo saxofonista alto Perico Sambeat, apresentado por Moreira como um dos melhores músicos com quem já trabalhou — elogios que o espanhol, aliás, não deixou por mãos alheias, brindando o público com uma série de solos ágeis e inspirados, baseados num saxofonismo melífluo e suave —, a Orquestra AngraJazz tocou e encantou, materializando uma bolha de magia sonora além-mar, a fazer lembrar os melhores ensembles de Kenny Wheeler.

Convocando nomes incontornáveis do jazz como Miles Davis, Billy Strayhorn, Dave Brubeck e Wayne Shorter para um repertório de arranjos originais que também incluiu o melhor da música para cinema, assinada por compositores como Henry Mancini, o grupo mostrou-se intensamente dinâmico e com uma ampla plasticidade para assumir geometrias variáveis — ora evocando a força do coletivo, ora reduzindo-se a “micro” formações de apenas alguns elementos —, dando assim resposta às exigências interpretativas dos temas selecionados. Às composições retiradas das várias eras dos bops visitadas ao longo do concerto, juntaram-se também clássicos como “A Sleepin’ Bee” e o bolero “Muñequita Linda”, belamente arranjados por Sambeat.

Numa orquestra que se mostrou sempre coesa nos arranjos e bem entrosada nos diálogos, os metais e os sopros foram uma fonte constante de envolventes harmonizações e deliciosos contrapontos texturais. Foi também desta “massa” que brotaram alguns dos melhores solos da noite, incluindo alguns dos mais exigentes, como os protagonizados pelo saxofone barítono de José Pedro Pires e pelo trombone de Claus Nymark. A secção rítmica, com Paulo Cunha (contrabaixo), Casimiro Ribeiro (guitarra) e Nuno Pinheiro (bateria), foi igualmente uma pedra basilar, revelando um rigor e uma assertividade irrepreensíveis, e o pianismo de Antonella Barletta uma expressão de paisagens oceânicas, ora revoltas, ora mansidas.

Se dúvidas houvesse acerca da importância de um apoio institucional contínuo a causas como esta, vale a pena recordar, parafraseando palavras proferidas ao longo da noite, que o AngraJazz é mais do que um festival — é uma causa pública. E a Orquestra AngraJazz, absolutamente essencial para a música do Atlântico, um dos átomos fundamentais desse arranjo molecular chamado Associação Cultural AngraJazz. Este concerto assim o provou.

[Jazz e afrobeat entre ilhas e continentes]

E ao jazz d’aquém-mar da Orquestra AngraJazz seguiu-se o d’além-mar do quarteto de Camilla George. A saxofonista e compositora, nascida na Nigéria, é uma das grandes vozes do saxofone alto da atualidade e um dos talentos que emergiram do jazz britânico na última década. De Londres, trouxe consigo na bagagem três álbuns de estúdio — Isang (2017), The People Could Fly (2018) e Ibio-Ibio (2022) —, trabalhos muitíssimo recomendáveis que denotam uma evolução constante e a construção de uma musicalidade única e genuína, na qual o afrobeat de Fela Kuti se funde ao bop de Charlie Parker, ao mesmo tempo que se inspira nas batidas sincopadas de J Dilla, na eloquência do sopro de Jackie McLean e nas tradições e raízes dos Ibibios.

Num concerto em que se fez acompanhar pelas teclas e voz de Renato Paris, pelo baixo elétrico de Jihad Darwish e pela bateria de Zoe Pascal, o quarteto de Camilla apresentou um espetáculo competente, com um alinhamento baseado maioritariamente nos dois últimos álbuns da saxofonista. Contudo, sentiu-se uma entrega algo “maquinal”, talvez devido à menor rodagem desta formação específica. No início deste ano, vimos Camilla George a tocar acompanhada por uma secção rítmica diferente, com Rod Youngs na bateria e Daniel Casimir no contrabaixo, num concerto em que a artista se mostrou mais solta, além de ter prestado muito mais atenção em enquadrar e fornecer contexto em relação ao seu — muitíssimo interessante! — universo musical.

Não que a saxofonista não tenha argumentos musicais para dar e vender: a sua articulação no alto é maravilhosa, a sua energia contagiante e as composições celebratórias. No entanto, o desconforto provocado no quarteto por alegadas imperfeições na monição — completamente despercebidas para quem estava na plateia — poderá ter limitado o potencial de um concerto que tinha tudo para transcender de forma mais acutilante no imaginário simbólico ali tão presente. Afinal, a música de Camilla George é também ela feita de Atlântico, esse mesmo oceano que serviu de estrada para o abominável comércio de seres humanos, que perpetuou a escravatura durante séculos e alimentou o colonialismo — temas tão relevante para a saxofonista —, é ainda uma ferida aberta na alma de muitos, propagada sob a forma de trauma intergeracional.

Ainda assim, há a destacar a voz de Renato Paris, capaz de criar algum do scat mais groovy que sai atualmente do Reino Unido, a capacidade rítmica de Zoe Pascal — jovem músico português, membro de grupos como Zeñel — que é um talento emergente a ter em conta, e os pulsares gingados de Jihad Darwish que muito contribuíram para o balanço da locomotiva.

Está aberta a vigésima quinta edição do Festival AngraJazz — e que bem que o jazz soa na Terceira.


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