LP / CD / Digital

Adrian Younge

The American Negro

Jazz Is Dead / 2021

Texto de Rui Miguel Abreu

Publicado a: 04/03/2021

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The American Negro é um trabalho importante, gigante mesmo, mas a primeira coisa a sublinhar no que a esta e às próximas linhas diz respeito é que a assinatura que identifica o seu autor pertence a um homem branco, europeu, muito distante, por isso mesmo, da experiência que o compositor, produtor, editor e multi-instrumentista Adrian Younge aqui relata. O racismo sistémico que produziu a entidade referenciada no título deste trabalho é singular e historicamente diferenciado de outros sistemas, igualmente opressivos de pessoas racializadas, que se impuseram noutros locais do planeta. Como em Portugal. Entender essa especificidade é elemento necessário e fulcral quando procurarmos construir uma relação intelectual com um objecto artístico, mas também político e filosófico, como este. Há outras relações que se podem estabelecer: emocionais, para começar, ou de pura fruição estética, por outro. Assumindo a tal distância, comecemos precisamente por aí.

Adrian Younge é um artista de amplos recursos, um músico versátil e mais do que competente em vários instrumentos, um arranjador com um sentido de tensão orquestral herdado dos grandes mestres – e é ele mesmo que oferece o nome de David Axelrod como referência possível para este trabalho quando explica, em entrevista ao Guardian, que “é como se James Baldwin se juntasse a Marvin Gaye para fazer um disco produzido por David Axelrod. É soul psicadélica, mas muito profissional ao mesmo tempo. Tem tantas camadas”. De facto.

A cadência orquestral que envolveu a soul desde que, na década de 60, se começou a adornar com cordas gravações clássicas de Etta James ou Aretha Franklin serviu, primeiramente, para tornar a música mais apelativa para o grande mercado branco, talvez até para suavizar a sua inerente negritude, ou pelo menos para a tornar mais síncrona com os parâmetros admitidos no mainstream. Mas gente como Isaac Hayes, Quincy Jones, Charles Stepney, Willie Hutch ou Norman Whitfield usou essa ferramenta do establishment artístico branco e eurocêntrico – a orquestra clássica – de uma forma criativa, não escondendo, antes sublinhando subtilmente, os contornos originais da música que evoluiu da experiência afro-americana e que emergiu do púlpito da Igreja Baptista alastrando-se para as ruas que na década de Martin Luther King, Jr. e Malcolm X clamavam por justiça seguindo o impulso do Movimento dos Direitos Civis.

É nesse vasto lago de águas límpidas e profundas que Adrian Younge bebe, ele que conhece muito bem a História em que tem vindo a trilhar o seu próprio caminho inscrevendo o seu nome numa generosa quantidade de capas de álbuns e, ao mesmo tempo, garantindo presença nas fichas técnicas de uma ainda mais vasta quantidade de trabalhos de gente tão diversa quanto The Gaslamp Killer, PRhyme, Bilal, Gallant, DJ Shadow, Jay-Z, Ghostface Killah, Common, Wu-Tang Clan ou ScHoolboy Q. Essa considerável experiência é aplicada em pleno neste álbum, que é apenas uma peça de um gesto artístico, filosófico e político mais amplo e que inclui também uma série de podcasts disponíveis na Amazon e um pequeno filme, ambos com o título Invisible Blackness.

Em The American Negro, Adrian Younge toca piano eléctrico Fender Rhodes, baixo eléctrico, guitarras eléctricas, saxofones alto, barítono, sopranino, clarinete e clarinete baixo, bateria e percussão, piano acústico, vibrafone, sitar eléctrica, celeste, guitarra lap steel, flautas, Hammond B3, siren wah, carrilhão, marimba, cravo e glockenspiel e ainda assina os arranjos executados pela Linear Labs Orchestra. Younge regista também, numa composição (“Watch The Children”), o uso da sua voz ao lado das de Loren Oden, Chester Gregory e Sam Harmonix, as que se escutam na maior parte dos temas. Há também que referir, completando os créditos vocais deste projecto, o nome de Sam Dew que surge solitário na tocante “Light on the Horizon”. Dizer, portanto, que este é um projecto ultra-pessoal para Adrian Younge é, obviamente, um eufemismo.

Convém sublinhar que a longa lista de instrumentos que Younge executa sem mácula não traduz algum tipo de exibicionismo vazio de propósito, muito pelo contrário. Como qualquer bom arranjador – e, uma vez mais, a referência a David Axelrod directamente assumida pelo autor é extremamente relevante, mas poderia também convocar-se para esta “conversa” Arthur Verocai, mestre brasileiro que o patrão da Linear Labs bem conhece –, Adrian Younge usa cada instrumento como uma cor tímbrica que lhe permite acrescentar nuances à luz sonora que vai domando nos seus “quadros”. Musicalmente, esta obra começa em África, com uma síncope que tem balanço ancestral, com os tambores a servirem de base para o swing de que depois se faz o tema título, em que Adrian parece intencionalmente cruzar tudo: o jazz e a soul, o funk e as psicadélicas orquestrações que embalaram tanta cinematografia afro-americana da década de 70 e daí até a um pulsar que é definitivamente hip hop. Younge é, sem a menor sombra de dúvida, o herdeiro natural de David Axelrod neste presente cada vez mais digital e portanto cada vez mais afastado da praxis musical clássica.

A maior parte do alinhamento, no entanto, faz-se de uma difusa e híbrida matéria musical que é intemporal, uma conquista autoral do próprio Younge que parece ter criado a sua própria síntese dessa vasta História que tão profundamente conhece e domina. The American Negro desenvolve-se assim como uma banda sonora de ritmo fluído, com temas de duração variável, mas sempre contida, porque as estruturas estão ali para servir uma narrativa. Acontece que aqui o filme faz-se das imagens desenhadas pelas palavras do intenso texto com que o autor nos confronta, um sólido, assertivo e inteligente tratado sobre racismo, sobre negritude, sobre identidade e resistência a mecanismos de opressão. Esse estudo, esse pensamento, é o que justifica a evocação pelo autor do nome do grande escritor, pensador e activista James Baldwin. A emoção empregue sobretudo na entrega do trio de vocalistas (escute-se “Revolutionize”, por exemplo, e o peso daquele “black is beautiful” que resolve o refrão) explica o nome de Marvin Gaye reclamado para esta particular equação.

A capa do disco aqui é também importante. Na já referida entrevista ao Guardian, Younge explica a intenção da imagem usada, que o apresenta como um exemplo da fruta estranha que durante tanto tempo cresceu em árvores com sangue na raiz: “O linchamento era uma forma de pornografia da intolerância: é o galvanizar de um grupo pela emoção, em vez de pelo pensamento, já que é mais fácil agir sem pensar. O linchamento era um acto celebratório, um acto em que as pessoas pagavam para levarem ‘lembranças’ como um polegar ou um olho e depois as pessoas enviavam postais umas às outras para dizerem ‘estive aqui’. Por isso quando se olha para a capa do álbum, que representa um desses postais, eu quero sublinhar como nós éramos vistos como os símbolos do mal na América. E ao ver essa imagem agora, nós simbolizamos o problema americano do racismo. Quero que as pessoas tenham uma experiência pessoal quando o virem; quero que me vejam como qualquer outra pessoa de cor que pode ser morta sem consequência judicial. Quero que as pessoas vejam que sou real e quero que elas se vejam em mim”. Para isso acontecer, para percebermos o outro, é necessário sabermos quem somos.

Como To Pimp a Butterfly, como Untitled (Black Is) ou como NEGRO, também esta portentosa criação de Adrian Younge é um retrato agudo e urgente deste presente, um produto de uma luta que está longe de estar terminada, um contributo para um esclarecimento que é necessário, um depósito de pensamentos e reflexões que nos diz tanto sobre o autor como sobre nós mesmos, dependendo de como o abordarmos. E é, como comecei por explicar, crucial que entendamos onde nós, os ouvintes desta obra, nos posicionamos antes de nela mergulharmos. Não se trata apenas de partir para este tipo de discos com empatia e humildade ou com a ilusão de se entender na totalidade o que eles significam, o que pretendem representar e transmitir. É preciso, de uma vez por todas, percebermos quem somos e o que representamos no sistema que urge desmontar. Porque é disso que depende o futuro. E discos como este são isso mesmo: recados para o futuro a partir de um presente que precisa de se resolver. “Nós” não se refere apenas à pessoa colectiva em que nos incluímos. Pode também designar o que se usa para manietar quem devia ser livre.


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