A expressão “realismo mágico” descreve uma técnica literária em que uma triste realidade narrativa é afastada do seu malogrado desfecho através da utilização de elementos fantásticos e fora deste mundo. Curiosamente, a música de Saya Gray faz uso de algo semelhante. No seu mais recente projecto, SAYA, mostra-nos em “HOW LONG CAN YOU KEEP UP A LIE?” um refrão choroso de falsete robótico, afastando as lágrimas recorrendo a um humanóide que não as tem. É um contraste engenhoso face ao ambiente assumidamente analógico e de aura folk e country que ouvimos no resto da música. Mas no que toca à fusão de géneros musicais, Gray já demonstrou que sabe o que está a fazer.
Apesar da artista canadiana de ascendência japonesa considerar SAYA como o seu primeiro álbum, a sua carreira musical já é longa para alguém que ainda nem chegou aos 30 anos. Se olharmos por trás da cartola, desvendamos um pouco da magia, que não é de estranhar tendo em conta o seu histórico familiar. O seu pai é um trompetista e compositor que actuou ao lado de sonantes nomes como Aretha Franklin, Tony Bennett ou Ella Fitzgerald, e a sua mãe fundou a escola de música canadiana Discovery Through The Arts há mais de 40 anos. Se a música não lhe corre nas veias, certamente não lhe saía dos ouvidos, e foi com naturalidade que entrou no mundo sonoro. Desde os 16 anos que tem mostrado os seus dotes no baixo, talento que já a levou a actuar junto de artistas como Daniel Caesar, Willow Smith ou Liam Payne. Em 2022, estava na altura de dar os primeiros passos em nome próprio.
A música de Saya Gray não é fácil de descrever e pode afastar aqueles mais susceptíveis ao caos sonoro. A guitarra é muitas vezes o ponto de partida, mas a mente inventiva de Gray termina frequentemente a viagem de forma inesperada. O seu primeiro projecto, 19 MASTERS não é tanto um álbum mas mais uma declaração, um “olhem só para tudo o que eu consigo fazer”. Não a sentimos arrogante, até mais o contrário, é vulnerável nas suas letras. Fala muito sobre o amor e as suas dores, como ouvimos na desconfiada “EMPATHY 4 BETHANY”, com um solo tristonho de trompete que dá outro tom à música, ou na interessante mistura de sonoridades em “S.H.T (silent hot tears/send hot tempura)”. Abraça a experimentação sem receio em temas como “TOOO LOUD!” ou “LEECHES ON MY THESIS!”, mas mostra a sua destreza para músicas dentro dos moldes como a sorrateiramente infecciosa “SAVING GRACE” ou a apoteose final de “IF THERE’S NO SEAT IN THE SKY (WILL YOU FORGIVE ME???)”. O projecto de estreia de Saya Gray é denso e hiperactivo, mas são características que espelham fielmente a sua incansável abordagem musical.
Foi preciso menos de um ano para a artista voltar à carga. Em 2023 lança QWERTY, um EP que mostra uma produção mais aguçada, mas o frenesim disperso que caracteriza muito dos seus temas continua bem presente. “PREYING MANTIS !“ é um dos destaques do disco, sem nunca parar muito tempo na mesma ideia consegue manter-nos presos à sua progressão. A urgente “..2 2 CENTIPEDES” traz à memória algo do universo dos The xx, mas com mais pedalada e abstracção, que desagua perfeitamente no potente rasgar de alcatrão que é “ok FURIKAKE”, detentora de um final estranhamente calmo e contido. Gray é fiel à sua imprevisibilidade, como demonstra neste projecto e na sua sequela QWERTY II. Este segundo EP lançado em 2024 tem temas bem conseguidos como “AA BOUQUET FOR YOUR 180 FACE” — espalhafatoso sem nunca deixar de ser convidativo —, o psicadelismo em lume brando de “DIPAD33 / W . I . D . F . U” ou o dub a alta velocidade de “RRRate MY KAWAII CAKE”. Os nomes das músicas são por vezes mais difíceis de desvendar que o seu conteúdo, mas faz tudo parte da viagem sonora de Gray. Ao longo dos três projectos, conseguimos notar um percurso em trajectória ascendente, de quem quer experimentar tudo ao mesmo tempo e que vai progressivamente aprimorando as suas composições. E essa optimização tem o seu auge em SAYA.
Para quem está familiarizado com a discografia de Gray, torna-se mais fácil perceber porque é que a artista considera este o seu álbum de estreia. Há ideias muito mais concretas, ouvimos menos desabafos esparsos que alternam frequentemente entre atmosferas sonoras, são substituídos por ideias que respiram, que são desenvolvidas com mais cuidado e atenção ao pormenor. Para aqueles que não conhecem a artista, este é o ponto de partida ideal. Temas como a saudosista “..THUS IS WHY ( I DON’T SPRING 4 LOVE )” e “PUDDLE (OF ME)” são tradicionalmente frescos, ideias simples com um cunho pessoal e reconhecível de Saya Gray. Há também apostas mais irreverentes através da maneira como funde a música electrónica com uma sonoridade mais folk e country em temas como “H.B.W.” — os graves profundos electrónicos rivalizam os acordes dedilhados —, “EXHAUST THE TOPIC” ou o emocional final “LIE DOWN…”.
SAYA é um álbum íntimo, vulnerável e triste que surgiu na ressaca de um fim de relação. À medida que escorriam da face, as lágrimas transformaram-se em melodias, em acordes, em canções consistentes. A inspiração surge dos mais variados sítios, e a capacidade de a canalizar para algo transformativo é um truque de magia que Saya Gray sem dúvida domina.