Não, não se enganaram a ler o título deste mês. O nome é o pesadelo de qualquer editor, mas a música desta banda lisboeta parece saída de um sonho deleitante: há muita coisa a acontecer e nem sempre conseguimos desvendar o seu significado, mas acordamos com um sorriso nos lábios e prontos a voltar para essa terra alada.
Em 2022, Débora King (teclas e voz) e João Neves (bateria) juntaram-se para compor. Dessas sessões de improvisação, brotaram temas que pediam algo mais, e foi aí que pensaram em Tiago Martins (baixo e samples) para se juntar a eles. O que os une é uma licenciatura em jazz, mas o caminho que percorrem vai para além da rigidez institucional por vezes associada a este género. Há algo mais fluido neste trio de ataque, que o diga o seu primeiro remate: “ARTIFICIÊNCIA INTELEGENCIAL” foi o single de estreia, tema solarengo com uma atmosfera de caminhada pelo jardim interrompida por tropicais cargas de água que são muito bem-vindas em dias quentes. O pontapé foi para o fundo da baliza, digno do prémio Puskás, e ainda que não tenha sido distinguido com esse galardão, existe outro que não lhe escapou: os SAMALANDRA venceram o prémio Novos Talentos FNAC 2024 com esta canção de exploração de engrenagens electrónicas. Com quase cinco minutos, fica a sensação de que o grupo podia estar na ginga da música durante horas.
Os mais desatentos podem referir-se à música deste grupo como jazz, seja pelos acordes pomposos ou pela perícia demonstrada pelos seus autores. Mas apesar da música que fazem ser informada por isso, há outras fontes de onde esta bebe, como o hip hop e a música electrónica. Nomes como DOMi & JD BECK ressoam com o output musical do grupo, e a nível nacional referem artistas como a LANA GASPARØTTI, Margarida Campelo ou os YAKUZA. São tudo nomes que orbitam o planeta jazz, mas o satélite a partir de onde fazem a sua arte apanha sinais dos mais variados corpos estelares. Há semelhanças na singularidade destes grupos, na maneira como escolhem desobedecer musicalmente sem nunca o fazerem verdadeiramente. A música está em constante evolução, e os artistas tanto podem continuar na água como aprender a respirar fora dela. E os SAMALANDRA gritam a plenos pulmões que estão aqui para mostrar a sua incrível mutação.
Em Outubro do ano passado lançaram o EP homónimo, que funciona como um acertado showcase do potencial do trio. Em “CHELIA” apresentam-se mais descontraídos, com palavras metafísicas que abrandam a cadência acelerada da parte instrumental, uma energia contrastada pela tristonha “SÉPIA”, de letra pessimista e uma introspectiva atmosfera sonora. Mas desengane-se quem pense que os SAMALANDRA não surgiram para agitar a cena musical portuguesa. A possante “ELVIRA” é cativante, munida de um riff insolente e eléctrico e um ritmo psicadélico que nos faz levitar sem tirar os pés do chão. E a frenética “GRAFITITI” tem uma progressão exímia, urgente sem nunca soar ansiosa, de tons a tilintar até ao poderoso e catártico solo. Percebemos com estas músicas que há uma dualidade no trabalho do trio: por um lado abraçam o convencional com o seu cunho pessoal, por outro inovam na sua abordagem, procurando esbater as fronteiras entre géneros.
O EP acaba com “RFI”, um interlúdio de tons abrasivos que deixa uma interrogação no final da audição. O trabalho dos SAMALANDRA rege-se pela experimentação, mas desse caos estruturado surgem temas que recompensam sucessivas audições. Há muita competência instrumental, atenção ao detalhe na mistura de som e conjugações intrincadas que parecem simples à primeira vista mas que denotam um trabalho elaborado. Em pouco mais de 20 minutos, provam que são definitivamente uma banda à qual devemos estar atentos. Se há erro em SAMALANDRA, de certeza absoluta que não é na música.