[O Violoncelo como Extensão da Terra]
Entre ramos que vergam ao sopro do vento e raízes que abraçam o húmus da terra, a arte de Joana Guerra nasce como um tronco antigo e vivo, cujas fibras ressoam com a música do tempo. O seu violoncelo, prolongamento da madeira primordial, geme e sussurra, ruge e murmura, como um organismo em metamorfose constante. E é nesse solo fértil, onde as veias do improviso se entrelaçam com o leito da composição, que desdobra a sua voz, ora rio subterrâneo, ora ave rasgando a imensidão do céu.
[Clareiras Sonoras e a Geologia da Escuta]
Joana Guerra não toca apenas o violoncelo; ela escava nele um território, abre clareiras sonoras onde a luz penetra em ângulos inesperados. Há no seu dedilhar e no seu arco uma geologia da escuta: camadas de tradição sobrepostas a veios de experimentalismo, onde a música popular se dissolve em paisagens de ruído, e os ecos de uma valsa espectral se dissipam em névoas de minimalismo hipnótico. Cada peça sua é um microcosmo vivo, onde o tempo se expande e contrai como a respiração de um bosque.
[A Música como Seiva Transdisciplinar]
O seu percurso não se esgota nas margens da partitura. Tal como os líquenes que colonizam a pedra, a sua música infiltra-se em territórios diversos: dança, teatro, performance. É uma seiva que alimenta a transdisciplinaridade, um sopro que aviva a combustão da criação colectiva. Em cada projecto, Joana Guerra ressurge metamorfoseada, adaptando-se à paisagem sonora e reinventando-se na simbiose com outros artistas.
A sua inquietação levou-a a explorar paisagens acústicas e a desenvolver técnicas expandidas para o violoncelo, um percurso que a integrou no movimento de livre improvisação de Lisboa. Entre reverberações e texturas, construiu uma identidade onde a experimentação se entrelaça com o instinto, onde o som se solta da madeira e se espalha como neblina.
[Entre Continentes e Estratos Sonoros]
As suas viagens musicais desenham cartografias invisíveis. Os seus concertos ecoam em espaços tão distintos quanto festivais e pequenos recantos ressonantes em Portugal e além-fronteiras: Espanha, França, Bélgica, Alemanha, Holanda, Brasil, São Tomé e Príncipe. Em cada um desses lugares, Joana Guerra deixa raízes efémeras, fragmentos de som que persistem na memória do espaço, como folhas sopradas pelo vento.
A sua discografia, com quatro álbuns a solo, culmina em Chão Vermelho (Miasmah Records, 2020), uma obra que capturou a atenção da crítica, um terreno onde as melodias despidas encontram texturas orgânicas e sonoridades da terra. Mas o seu universo não se esgota na solidão do violoncelo: integra projectos como Lantana, The Alvaret Ensemble, Joana Guerra & Gil Dionísio e o Tratado Ensemble, onde o espírito da exploração musical se expande e multiplica.
[Rios Confluentes: Colaborações e Trilhos Artísticos]
Se a sua música se assemelha a um rio que percorre vales e desfiladeiros, então as suas colaborações são os afluentes que enriquecem essa corrente. Joana Guerra entrelaça a sua arte com a de músicos como Joëlle Léandre, Maria do Mar, Mikhail Karikis, Surma, Spectrum Awareness, Carlos Godinho, Gume, Victor Herrero, Lula Pena, Yaw Tembe, Asimov, Angelica Salvi, Tiago Sousa, João Ferro Martins, Pop Dell’Arte, João Pais Filipe, Paulo Vicente, Beat the Odds, Raquel Lima, Trigger, Ricardo Jacinto, Pedro Melo Alves, Mia Distonia, Orquestra do Ruído, Cícero e Bernardo Álvares.
Como compositora e performer, a sua presença estende-se além da música, desaguando em diferentes margens artísticas. No domínio da dança, trabalhou com Clara Andermatt, Madalena Victorino e Marina Nabais; no teatro, colaborou com a Companhia João Garcia Miguel e o colectivo Hotel Europa. Também encontrou na sétima arte um refúgio sonoro, compondo bandas sonoras para Nos Campos em Volta, de João Botelho, apresentado no IndieLisboa 2015, e Peceras, de Asur Fuente.
[O Solo: A Voz da Madeira e do Ar]
Nos seus projectos a solo, Joana Guerra encontra um espaço de liberdade absoluta, onde cada nota se ergue como um sopro de vento sobre o solo vermelho da experimentação. O seu violoncelo hipnótico ressoa em camadas de luz, sobre as quais a sua voz se suspende, onírica e etérea. As suas composições desconstroem a forma convencional da canção, erguendo paisagens sonoras em que o folk, a electrónica e o vanguardismo se entrelaçam, como raízes subterrâneas que encontram ressonâncias inesperadas.
Cada peça solo sua é um organismo vivo: melodias intricadas que se desenrolam como ramos estendendo-se ao céu, harmonias que se dissolvem em murmúrios e dissonâncias, como um bosque que respira. A utilização de técnicas de looping permite-lhe criar camadas sobrepostas, como folhas caindo sucessivamente sobre o solo, formando uma tapeçaria densa de som e textura.
A sua música desafia géneros e formatos, transformando o violoncelo num instrumento de infinitas possibilidades, onde o acústico se funde com o electrónico e o tradicional se dissolve no experimental. Como uma árvore solitária numa planície vasta, Joana Guerra ergue-se no palco, sozinha, mas preenchendo o espaço com uma floresta de sons.
[Chão Vermelho: Uma Liturgia da Terra]
O Violoncelo como Pele de um Mundo Seco e em Regeneração
[O Canto do Solo Quebrado]
Há álbuns que são paisagens sonoras e outros que são paisagens vivas, impregnadas do pó da terra, do grito das fissuras e do hálito quente das cinzas. Chão Vermelho, de Joana Guerra, é um ritual, um lamento e uma exegese do solo. A sua música respira na poeira do tempo, como uma profecia que dança entre o apocalipse e a renovação. Neste disco, a artista desenha um mapa onde as fendas da terra dialogam com o murmúrio do violoncelo e onde a voz se ergue como um cântico pagão, ancestral e indomável.
[“Rajada”: O Vento Rasga o Silêncio]
A primeira faixa, “Rajada”, é um trovão breve que inaugura o ritual electrónico e acústico. O violoncelo e o violino de Maria do Mar entrelaçam-se como correntes de ar que assobiam através das fendas secas da terra. A composição é mínima, urgente, como um rasgo inicial, a primeira racha na pele da paisagem.
[“Equinopes”: O Solstício da Voz]
Em “Equinopes”, a voz de Joana Guerra suspende-se como um feitiço. O contrabaixo de Sofia Queiroz Orê-ibir fornece um alicerce ritualístico, onde cada nota é uma sombra em movimento. Há nesta peça a sensação de um ciclo que se fecha e outro que se abre, de uma estação que morre e outra que nasce.
[“Pedra Parideira”: O Som das Rochas Antigas]
Uma peça curta, “Pedra Parideira” invoca o mistério geológico. A voz e as notas surgem como se fossem estilhaços de pedra rolando pelo tempo, uma meditação sobre a paciência da terra e a sua capacidade de gestar o novo a partir do antigo.
[“Onna Bugheisha”: A Luta e a Lenda]
A influência nipónica deste tema confere-lhe um espírito guerreiro. A percussão de Carlos Godinho evoca batalhas ancestrais, enquanto o violoncelo conduz um ritual sonoro que se assemelha a uma marcha para um destino incerto. A peça reconfigura a mulher como guerreira do som, uma samurai das cordas.
[“White Animal”: O Último Suspiro da Fera]
A mais extensa e atmosférica das peças, “White Animal” parece narrar o ocaso de uma criatura em vias de extinção. Os arranjos envolvem a voz e o violoncelo como uma névoa branca que cobre a paisagem. O apocalipse é lento, hipnótico, uma despedida ritualista para o que está prestes a desaparecer.
[“Oásis”: Entre a Fome e a Esperança]
Um tema que se insinua como miragem sonora. A presença do violino, da voz animalesca e da percussão constrói um cenário de deserto, onde a esperança é sempre uma promessa distante. “Oásis” não é uma chegada, mas sim uma procura, um deslocamento pelo horizonte seco.
[“Entropicar”: O Fulgor do Caos]
Breve e caótica, esta peça é um instante de desordem pura. O violoncelo ressoa em fragmentos, como se tentasse organizar o caos num padrão sonoro efémero. “Entropicar” é o colapso antes da reconstrução.
[“Lume”: O Fogo Ritualista]
Com letra de June Nash, “Lume” transforma-se num incêndio controlado. A percussão de Carlos Godinho e o violino de Maria do Mar alimentam as chamas da composição, onde o fogo é, simultaneamente, destruição e purificação.
[“Redução”: O Eco da Cinza]
Nesta peça minimalista, Joana Guerra experimenta o som como fragmento, reduzindo-o à sua forma mais essencial. Um tema que evoca o silêncio que se segue à combustão, o eco do que foi consumido.
[“Micélio”: A Esperança Subterrânea]
O disco encerra com “Micélio”, um tema onde o violoncelo e a voz se entrelaçam num sussurro de renascimento. O micélio, essa teia subterrânea que conecta as raízes das árvores, torna-se metáfora para um possível futuro: da podridão, nasce a vida, e da devastação pode surgir um novo ciclo.
[Epílogo: Entre o Fim e a Regeneração]
O chão está vermelho. Vermelho de sangue, vermelho de argila, vermelho de fogo extinto e de fogo prestes a acender-se. Chão Vermelho não é um disco de lamento, mas de memória e profecia. Joana Guerra entrega-nos um álbum que se posiciona entre a ruína e a esperança, entre a terra esgotada e a promessa de um novo ciclo. Há na sua música uma geologia sonora, onde o violoncelo e a voz escavam camadas, revelam vestígios, descobrem ecos do que já foi e possibilidades do que ainda pode ser.
E enquanto o micélio sente a nossa presença, ainda há um murmúrio de esperança a propagar-se pelo solo.