A nossa jornada no NOS Alive de 2024 começou na tarde de quinta-feira, enquanto íamos ziguezagueando a multidão que ia entrando a passos no Passeio Marítimo de Algés para nos dirigirmos ao WTF Clubbing Stage. Era mais uma oportunidade para ver Silly, artista que temos vindo a acompanhar com atenção e que este ano deu o passo mais maduro do seu percurso ao lançar o primeiro álbum, Miguela, produzido na íntegra por Fred Ferreira.
Ao vivo, a mesma dupla apresenta-se em palco, com Fred na percussão e Silly a tomar conta do microfone, teclados ou guitarra, consoante o tema. Para quem está familiarizado com o seu registo e já assistiu a uma performance em sala fechada — como tivemos a oportunidade de o fazer no CCB — é fácil perceber que a música introspectiva e delicada de Silly resulta melhor fora do ambiente de festival.
Porém, tocar nestes eventos é uma óptima forma para divulgar a obra junto de outros públicos e foi precisamente o que Maria Bentes aproveitou para fazer, recorrendo a todos os seus argumentos, da simpatia à técnica musical, demonstrando como aperfeiçoou o domínio da voz durante o processo de construção deste trabalho. Concerto sem máculas, ideal para um fim de tarde tranquilo, que daria lugar a uma actuação bem mais agitada.
Foi um dos melhores upgrades desta edição do NOS Alive: o novo set-up de luzes e ecrãs do WTF Clubbing Stage permitiu uma experiência mais envolvente, com uma fila de ecrãs a subir pelas costas do palco até ao topo da tenda. Nada melhor do que testar isso mesmo com os artworks visuais dos Conjunto Corona, fundos psicadélicos pixelizados que se cruzam com imagens aleatórias de personagens como Fernando Madureira ou José Mourinho. Só faltavam mesmo alguns planos do presidente Isaltino Morais a acender um charuto, tal não foi a sua presença neste concerto, com David Bruno a interpelar por diversas vezes o autarca de Oeiras e a convidá-lo para jantar num dos restaurantes da sua famosa lista de favoritos.
De resto, sabemos bem o quão oleada está a máquina, por mais voltas que a vida deste Corona tenha dado. São 10 anos na estrada, seis álbuns conceptuais, uma dupla infalível composta por David Bruno e Logos — o primeiro transborda carisma e naturalidade nos discursos; o segundo é energia em estado puro, sempre a saltar e a puxar pela vasta multidão, conhecedora das várias faixas, que se foi juntando e interagindo, seja para gritar mais uma vez “Gondomar! Gondomar!” ou para recolher o tão desejado hidromel fornecido pela mascote Homem do Robe. Impressionante ver o quão longe conseguiu chegar um grupo de rap alternativo construído em torno de um estereótipo portuense que habitava um imaginário de narcóticos.
E se era para gritar por Gondomar, então só faria sentido dirigirmo-nos ao Coreto para assistir ao concerto dos filhos da terra João Não & Lil Noon, protagonistas de uma nova música romântica portuguesa, regada a letras poéticas, auto-tune e beats dançáveis de estética retro — um fruto de sementes tão locais quanto globais e que representa mesmo uma resignificação da cultura nacional. Terá sido uma das performances mais longas que passaram este ano pelo palco com curadoria da Arruada, com a prolífica dupla a transformar aquele espaço em pista de danceteria com temas como “Se Eu Acordar” ou “Purpurina”. Só faltava a bola de espelhos reluzente.
Se a pista estava aberta, a festa tinha de continuar no grande baile dos Bateu Matou, o trio dos experientes e inventivos bateristas e produtores Quim Albergaria, Ivo Costa e RIOT, que, de diversas formas, tanto têm dado à música portuguesa. Lançaram este ano o segundo álbum em grupo, uma autêntica Batedeira, que reflecte a multiculturalidade orgânica de uma Lisboa diversa, onde tanto cabe a tradição portuguesa como ritmos africanos, produção americana ou melodias de Goa. Música de diferentes aromas e sotaques que reflecte a vivência da cidade.
É precisamente essa a celebração que acontece cada vez que os Bateu Matou sobem a um palco, com a ajuda dos anfitriões de serviço Pité e RAISSA. Desta vez, houve também a participação especial de Rão Kyao, veterano que marcou presença para fazer uso da sua mestria na flauta ao interpretar um dos melhores temas do disco, a explosiva “Cada x + Perto”, canção construída com base em samples seus que acabou mesmo por incluir gravações originais suas.
Voltámos ao Coreto, logo de seguida, para assistirmos à performance de Ricardo Crávidá. No ano passado, o cantor e produtor da Graça apresentou o EP A Balada Lisboeta, uma pop identitária movida a melodias de auto-tune e a uma produção intensa que se prova desafiante de transpor para o palco sem o apoio de uma backing track nos refrões ou sem uma nitidez na voz que nos permita compreender os versos. A democratização dos meios e a quebra dos géneros musicais tradicionais podem ser francamente positivas, mas o grande obstáculo para muitos músicos passou a ser a diferenciação e a definição de um som original bem delapidado; processos que exigem maturação e reflexão crítica.
Ainda tivemos oportunidade de assistir a um DJ set mais do que competente por parte de Quant, produtor brasileiro radicado em Portugal que se estreou recentemente pela Enchufada e que em breve irá partilhar uma remistura — bem testada no Passeio Marítimo de Algés — de “Coisas Bunitas”, autêntico hino de Sara Tavares (e que na verdade já mereceu um óptimo remix, eternizado em disco, por parte de iZem e Karlos Rotsen).
A primeira noite do NOS Alive terminou com o espectáculo que junta Moullinex e GPU Panic, uma performance a 360 graus — a primeira de sempre do festival que começou em 2007! — de uma exigência técnica considerável, com raios de luzes a brotarem do topo da tenda do Palco Heineken até à dupla de músicos, a tocarem frente a frente, envolvidos por uma multidão que parecia transportada para um clube.
É uma actuação visualmente impressionante, feita por dois dos mais talentosos produtores e músicos portugueses, que tem percorrido o mundo e que só não tem mais visibilidade por estar circunscrita aos circuitos da electrónica e a horários como as três da manhã, um slot bastante tardio para uma quinta-feira mas pelo qual valeu a pena esperar, tendo em conta as batidas orquestradas pelos virtuosos Luís Clara Gomes e Gui Tomé Ribeiro.
O segundo dia de NOS Alive iniciou-se com um momento acima de tudo simbólico. Se a memória não nos atraiçoa, eram 18h30 e T-Rex tornava-se no primeiro rapper português a actuar em nome próprio no palco principal do festival. Há dois anos, Daniel Benjamim actuava no Clubbing para uma multidão de gente. Depois de se tornar no músico português mais ouvido do ano no Spotify, de arrebatar prémios e conquistar relevância, chegou ao patamar sonhado — ainda que seja um concerto de final de tarde e que, para o público, convenhamos, não seja propriamente uma actuação imperdível. Afinal, T-Rex tem estado na estrada, a percorrer o país de lés-a-lés em concertos gratuitos, e ainda há menos de um mês fez uma actuação ali bem perto, nas Festa de Tires, com entrada livre e num horário mais nocturno. Serão poucos os que tenham comprado um bilhete para o NOS Alive para ver T-Rex, mas muitos juntaram o útil ao agradável enquanto esperavam pela grande atracção da noite, Dua Lipa.
Para T-Rex, contudo, é fácil perceber por que foi especial. Como frisámos logo no início, tocar naquele palco não é para todos. Enérgico e dedicado como sempre, o alinhamento centrou-se sobretudo no longo Cor d’Água e em celebrar a vitória ali representada, com a família da Máfia73. “Se piso este palco com a forma como falo é para levar a língua portuguesa a outro patamar. E vou levar duas bandeiras às costas, a de Angola e a de Portugal”, exclamou de forma sentida em palco, mostrando como conseguiu subir a pulso, por mais obstáculos que existissem no caminho. E sabemos que existiam muitos. Sim, é possível. E o céu parece pequeno demais para as merecidas ambições de Daniel Benjamim.
Dos voos mainstream para os subterrâneos do underground: do outro lado do Passeio Marítimo de Algés, BR!SA apresentava o seu primeiro (e novo) álbum, É FDD., um disco de recorte clássico e letras afiadas que só ganharam projecção com a sua performance nata, onde esteve acompanhada por DJ Algore. O som nítido, que deu prioridade às rimas, também ajudou. Já sabíamos que BR!SA tinha talento para os palcos, voltou a mostrar-se à altura do desafio e com a garra certa para escalar o panorama, por mais difícil que seja profissionalizar-se no circuito underground, sobretudo para uma mulher. Uma coisa é certa: não houve rap mais puro e duro neste NOS Alive.
Mantivemo-nos ali mesmo para assistir ao concerto de L-ALI, rapper e compositor com um percurso singular, forjado em masmorras sonoras mas que tem vindo, aos poucos, a abrir o seu espectro musical em direcção a caminhos mais dançáveis e pop — o que é muito bem-vindo, até porque isso nunca implicou qualquer perda de qualidade ou uma desvalorização da escrita, muito pelo contrário. Ao vivo, Hélder Sousa deu um concerto muito seguro, prova de uma década cheia de música e palcos, que deu para celebrar em comunhão com um público interessado.
Rapidamente tivemos de passar para o WTF Clubbing Stage para assistirmos ao concerto da outra metade deste power couple, JÜRA, que tem trilhado um caminho de sucesso com a sua pop urbana. Num espectáculo marcado por muita excitação e interacções com o público, tal não era a dimensão da audiência que tinha diante de si, foi cantando sobretudo canções de amor, felizes e transparentes, que estão no seu mais recente disco, sortaminha.
Acabámos por chegar àquele que parecia um dos concertos mais aguardados do Coreto, com Maudito a reunir uma vasta turma de fiéis para o ver em palco. Na manga trazia Grand Bleu, EP do ano passado que recentemente teve direito a uma edição deluxe, e que mostra um Maudito livre de padrões e complexos para explorar um rap-pop-alternativo envolto em beats electrónicos e ambiências auto-tune. Gustavo Sousa explora a sua voz como nunca e expõe histórias vulneráveis ou caricatas num registo fresco, de fragrância apelativa. Grande malha.
Seria sempre ingrato para quem quer que tocasse ao mesmo tempo do que Dua Lipa, diva pop que atraiu todas as atenções no final do segundo dia de NOS Alive, e coube a Bruma essa missão. DJ portuense que tem tido palco regular em diversas pistas, entregou um maduro e imaculado set de hip hop, sobretudo clássico, que tanto foi à raiz norte-americana como aos alicerces portugueses, com espaço para o groove e para a palavra ritmada, em transições fluidas. Aposta segura para quem quiser abanar a cabeça numa próxima vez.
O terceiro dia do NOS Alive levou-nos até Sofia, a Capital da Bulgária. Jovem cantautora e produtora que lançou este ano o seu primeiro álbum, contei e deixei que tu me julgasses, ao vivo actuou com dois músicos, uma formação que beneficia a sua música e performance, deixando-a mais livre para explorar o microfone, cantar as letras vulneráveis mas por vezes também humorísticas, para interagir com o público como poucos que passaram por ali. Indie pop com algumas ambiências electrónicas que soa bem em disco e ainda melhor ao vivo, sobretudo em temas como “cansada de ti” ou “VEM COMIGO”. O percurso ainda pode estar muito no início, há sinais de verdura mas sobretudo de potencial na música de Sofia Reis.
Esta jornada por três dias de NOS Alive ficou concluída com a performance de Isa Leen, projecto de Rita Sampaio que nos embebeu numa viagem electrónica noisy impulsionada por uma energia rock — actuação que só ganhou força pela presença de instrumentos em palco, por muito digital que possa ser a roupagem destes sons.
Numa altura em que o mercado dos festivais e concertos em Portugal está claramente saturado — com tantos eventos a acontecer, dia após dia — torna-se cada vez mais difícil para um festival conseguir inovar. Mas quem mais possui essa capacidade são os grandes festivais como o NOS Alive. Fruto deste contexto, foi certamente uma edição pobre em relação a anos anteriores, e falta criatividade e risco quando olhamos para a programação.
Ainda assim, e como não poderia deixar de ser, é um festival que dá um contributo assinalável para a música portuguesa — nomeadamente com a programação diversa que a Arruada faz no Coreto, onde se sente liberdade e espaço para novos valores se levantarem, até porque é um lugar que garante algum mediatismo a estes artistas —, mesmo que muitas vezes os músicos nacionais estejam relegados para palcos mais secundários.
Evidentemente, como em qualquer mercado, quanto mais raro o acontecimento, maior a procura, e daí que muitas das bandas internacionais continuem — e irão sempre continuar — a ser mais apelativas. Por muito que se repitam e que andem a percorrer os diferentes grandes festivais (ou salas) pelo país. A realidade que a indústria da música atravessa é complexa, bem sabemos, mas deixamos para o futuro desejos de maior arrojo e imaginação.