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Fotografia: nvstudio / Fundação de Serralves
Publicado a: 05/03/2025

A grave percepção humana da Natureza.

“A Audição Vibratória” de Gil Delindro em Serralves: um sentido para ver melhor

Fotografia: nvstudio / Fundação de Serralves
Publicado a: 05/03/2025

Há já muito tempo que se tornou axioma a ideia de que os olhos só vêem aquilo que estão preparados para ver. Claríssima visão partindo do filósofo Ralph Waldo Emerson — mentor transcendentalista norte-americano. Essa noção pode bem ser estendida a outros campos sensoriais, como a audição. Pleno significado tem o sentido de que também só ouvimos aquilo que estamos preparados para ouvir, validada de imediato na música bem como na efectiva percepção do espaço acústico envolvente. Se a isto acrescentarmos a consciência do grau de automatismo dos dias e a perda da visão integral do meio em redor, o nosso afastamento da Natureza pode bem ser desastroso — há claras demonstrações.

Gil Delindro (n. 1989, Porto) é um artista sonoro e visual que tem produzido obras nos campos da bioacústica, com recurso a instalações escultóricas sonoras e recolhas em diversos espaços naturais do planeta. Apresenta-se em Serralves com a exposição “A Audição Vibratória”, que pode (e deve) ser vista (e escutada) até 10 de Junho na Capela e Cozinha da Casa de Serralves, no Porto. Parque e Museu de Arte Contemporânea a que o artista regressa depois de “Resilience”, quando em 2022 expunha a casca resiliente de um sobreiro sobrevivente ao incêndio, posta em rotação e escutada como um disco tridimensional. Agora, em 2025, com a presente mostra, Delindro “celebra a hipersensibilidade com que as pessoas surdas sentem o mundo sonoro, mas também aponta para um mundo que facilmente ignoramos”, nas palavras de Pedro Rocha, curador da exposição em Serralves. Delindro tem feito da sua prática artística campo de intervenção “sobre a luta contemporânea entre os seres humanos e o seu ambiente em rápida mutação”, isto em autobiografia do seu trabalho, contudo reforçando uma mensagem que não se esgote nem assuma apenas um carácter político. 

Para outro fundamental pensador e autor de entre os transcendentalistas, Henry David Thoreau, os elementos orgânicos e inorgânicos assumem igual importância num todo. Também essa assunção está evidente em Delindro, como um plano basilar na sua obra, e encontramos esse balanço e dos seus elementos acústicos nesta exposição. “A Natureza não reza – the lowest and highest pitch combined” é uma escultura que transpõe para o plano expositivo um campo de gramíneas sazonais da Serra de Arouca. Dela ouvem-se murmúrios, como que diálogos entre as partes do mundo das plantas, cujos tons só muito amplificados e numa escuta dedicada nos daremos conta — elementos acústicos orgânicos. Escultura que encontramos entrando pela torre da capela, uma exploração em si mesma do espaço expositivo. E passamos para um sentir do outro lado inorgânico em “Not so zen garden”, onde sobre uma placa que vibra sob efeitos de ondas por impulsos sonoros graves, detritos vulcânicos num manto de óxidos de ferro dançam e pululam — elementos inorgânicos. Contudo não se trata de mundos antagónicos, antes de contrapontos que se conectam, que dependem para um equilíbrio. Esse sentido metafórico está presente na obra de Delindro como na prosa de Thoreau. Uma leitura que traz a lume a reflexão, a crítica, mas que assenta primeiramente num plano discursivo descritivo, da beleza das coisas, na contemplação. Desse jogo visto em “Not so zen garden” revemos a teoria da Tectónica de Placas e da deriva continental proposta de Alfred Wegener. Vemos como os elementos se comportam até e desde uma Pangeia. Aqui a força convectiva do manto é na vez o impulso sonoro, nos limites da percepção ao ouvido humano, no espectro dos graves e subgraves. 

O trabalho de Delindro, como artista, é feito de colaborações com os campos da ecologia ou da geologia, saberes integrantes dos diálogos patentes na sua obra. “Ao que soa um sismo?” Procura indagar e responder em simulacro Delindro com a peça “The sound of an earthquake contained in a room”, que só na visão já alude ao que o som tem. É justamente essa uma das maiores propostas desta mostra de um total de 7 peças, a de como pela visualização e percepção vibratória dos elementos se intui — ou melhor, se escuta — o som. O espaço que percepcionamos está limitado, a nós humanos, ao campo das frequências auditivas que alcançamos — entre os subgraves e os ultra-sons — e a luz visível — entre os infravermelhos e os ultravioletas. Fora desse campo há um mundo que não ouvimos nem vemos, mas fundamental e presente. Há nesta exposição esse desafio dos espaços que não habitamos e onde cabe a nossa condição auditiva, deficiente ou mais ou menos funcional. Delindro é um frequentador de paisagens naturais, viajante para o encontro dos limites da percepção humana com o espaço acústico. Há essa procura como objecto de trabalho e estímulo, quer no subir da montanha, no habitar do deserto ou no mergulhar na água gélida. Dessa exploração traz-nos, até ao seu discurso como artista, um entendimento com o meio, amiúde com recurso à amplificação do sinal — efeito lupa, para se ver melhor. Uma parte desse trabalho de campo pode ser visto no vídeo “RHONE”, uma quase meia-hora de imagens sonoras em pleno vale glaciar, o maior e mais ameaçado da Europa, face ao degelo. Ouvimos a vastidão e aparente imobilidade das massas de gelo, percolam as sombras do gotejo, caminha o recolector dos sons entre a macro e a microescala dos movimentos. Joga-se com a escala da percepção, como que também aí um lembrete do ponto onde nos situamos enquanto observadores e como nisso há um lugar que distingue o que se vê e o que se ouve, ou não. E ainda nesse vídeo com a parte “Genetic Gravel”, captado na base da montanha, onde uma frente maquinal opera um desmonte das massas rochosas. Remoção da matéria e transformação até à poeira, essa mesma que volta a subir, como que a lembrar a ascensão da matéria em ciclo e que se fecha, contida em “RHONE – suspension” — escultura sonora, para vitrina de vidro, aneto em pó, cortiça e subwoofer.  

Precisamente são os subwoofers as almas das esculturas de Delindro — impulsos sónicos que geram ondas vibratórios de padrões estocásticos, imprevisíveis como os sismos. Há nesta exposição uma semiótica que remete a um sentir aquilo que temos andado a perder, ou a não ver. É por isso que o começo, transcendente, se faz com “Para lá da escuta”, a peça de 2024 da grande placa de alumínio e malha de cobre, que ocupa em esplendor a Capela da Casa de Serralves. 

Gil Delindro estará em performance acústica no Auditório do Museu de Serralves — domingo dia 9 de Março às 18 horas — numa colaboração inédita, com as artistas Beatriz Romano e Inês Barbosa, para uma composição sonora desenvolvida com recurso à vibração / pressão acústica induzida no corpo. Romano faz parte do colectivo de música electrónica Freqsix, integrando 6 músicos com perda auditiva; Barbosa é fundadora da Orquestra de Sopros e Eletrónica — coletivo de música improvisada — e das CAVALA — projecto de música experimental.


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