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Texto: ReB Team
Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 27/01/2020

De Aesop Rock a Wu-Tang Clan.

20 álbuns que comemoram 20 anos em 2020

Texto: ReB Team
Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 27/01/2020

Quanto tempo é que um clássico demora a alcançar esse estatuto? É uma resposta que varia de disco para disco, mas duas décadas é uma boa medida de tempo para se perceber como envelheceu um trabalho.

Neste grupo de álbuns, há um pouco de tudo, desde a equipa Wu-Tang representada pelo colectivo e individualmente por Ghostface Killah ao trio D’AngeloCommonErykah Badu, soulquarianos que não deixaram uma pedra por virar, passando ainda pela loucura em doses recomendáveis de OutKast e Madlib ou a memória nacional pelas mãos de Mind da Gap e Cool Hipnoise.

São 20 projectos (18 na imagem) que ainda merecem audição atenta, 20 anos depois.


[Aesop Rock] Float

A carreira de Ian Bavitz tem sido inteiramente dedicada ao circuito underground. Aos 21 anos gravou o seu próprio álbum de estreia em CD-R e tratou dos trabalhos manuais que envolveram a concepção das capas, distribuindo as cópias de Music for Earthworms (1997) de mão em mão ou por encomenda via website. Appleseed, curta-duração editado dois anos depois, seguiu o mesmo caminho mas causou maior impacto do que o seu antecessor, cimentando o nome de Aesop Rock enquanto um dos pioneiros do hip hop de cariz mais abstracto.

Em 2000 chegou-lhe às mãos um convite para ingressar na independente Mush Records. Float, o seu segundo LP, serviu como carta de apresentação na editora que mais tarde se viria a tornar preponderante nas carreiras de gente como Daedelus ou Busdriver e captou a atenção de El-P, que o convidou prontamente para se juntar à sua recém-criada Def Jux, pela qual viria a lançar o clássico Bazooka Tooth.

– Gonçalo Oliveira


[Air] The Virgin Suicides 

Um caso claro de “quem conta um conto acrescenta um ponto”, a história das irmãs Lisbon, adaptada para cinema por Sofia Coppola, tem a sua versão pelos Air em formato banda-sonora — naquele que é o registo mais marcante da banda, a par de Moon Safari.

“Playground Love” continua a ser das suas músicas mais ouvidas. Apresenta o tom e dá vida à história: o piano ostinato, o Mellotron – escolha táctica, como representação duma sonoridade associada aos anos 70, marcada por discos importantes de The Beatles ou Tangerine Dream – a presença das guitarras e a voz entorpecida de Gordon Tracks. A sonoridade melancólica repetida explora uma estrutura menos pop, mais dentro do estilo easy listening, sem vozes, a que associamos o duo francês, com a clara intenção de criar uma espécie de leitmotif – embora este seja mais trabalhado ao nível tímbrico e instrumental –, inteligentemente adaptando a sua música ao cinema. A banda nunca foi unanimemente elogiada, mas poucas são as adaptações de um sentimento ou época a aliar tão bem a electrónica ao rock progressivo.

– Vasco Completo


[Broadcast] The Noise Made By People

O desaparecimento demasiado precoce de Trish Keenan envolveu a obra dos Broadcast numa compreensível aura de negro luto, como um álbum de fotografias que resguarda fantasmagóricas e já algo difusas memórias. O facto de o último trabalho do grupo, o fantástico Broadcast and The Focus Group Investigate Witch Cults of the Radio Age, datar já de 2009 (a banda sonora dos Broadcast para Berberian Sound Studio, lançada em 2013, é, largamente, uma criação solitária de James Cargill) permitiu que o tempo assentasse sobre os seus primeiros trabalhos como uma fina poeira que lhe atribui a patine certa. Do cruzamento de ecos de sunshine pop, folk psicadélica, bandas sonoras de obscuros filmes europeus e alguma electrónica radiofónica resultou um disco pop apenas comparável ao que os Stereolab andavam a fazer, embora o ângulo de Trish e James fosse bem distinto, permitindo-lhes conquistarem um espaço como eminências pardas de toda a cena hauntológica de que a Ghost Box de Julian House (o cérebro por trás dos Focus Group e designer de várias das capas dos Broadcast, incluindo, pois claro a deste The Noise Made By People) é hoje máxima representante.

– Rui Miguel Abreu


[Common] Like Water For Chocolate

Disco absolutamente brilhante, Like Water For Chocolate, o quarto na conta privada de Common, representou um pináculo numa época particular do hip hop: com Questlove, dos Roots, aos comandos do colectivo Soulquarians (D’Angelo, James Poyser, Pino Palladino e um tal Jay Dee…), este trabalho destilou décadas de música negra, do jazz ao afrobeat, do r&b mais cru à soul mais sofisticada, entendendo cada um desses capítulos como etapas numa história em que o hip hop também representava um papel. E depois, cereja no topo do bolo, Common, retirando inspiração da extraordinária fotografia de capa de Gordon Parks (o mesmo fotógrafo que inspirou Kendrick em “Element”), discorre sobre a negritude numa América a braços com as tensões que continuam a dilacerar gerações de negros às mãos da polícia e de uma sociedade equipada para o tormento muito mais do que para a harmonia. E com Femi Kuti, o já desaparecido Roy Hargrove, Bilal, Jill Scott, Mos Def, Slum Village, MC Lyte, D’Angelo ou Cee-Lo Green nos créditos, este álbum é também, e afinal de contas, um imaginativo ensaio sobre o poder criativo da comunidade, tão eficaz nos auscultadores quanto no sistema do clube, tão brilhante no rádio do carro, como no palco. E, como um néctar vintage, parece só ter melhorado com o tempo.

– Rui Miguel Abreu


[Cool Hipnoise] Música Exótica Para Filmes, Rádio e Televisão

O aparecimento dos Cool Hipnoise está intimamente ligado ao boom do hip hop no nosso país. A aposta no grupo por parte da NorteSul foi ao encontro da proposta à qual a editora se comprometeu: carimbar projectos emergentes e eclécticos que visavam uma renovação nas sonoridades que pairavam em Portugal. À banda juntaram-se Mind Da Gap, Boss AC ou Ithaka no catálogo da editora, este último que no seu álbum de estreia pela Fábrica De Sons havia contado com um forte input de Francisco Rebelo, João Gomes, Paulo Muiños, Tiago Santos e Nuno Reis, os cinco músicos resistentes na formação dos Cool Hipnoise. Música Exótica Para Filmes, Rádio e Televisão trouxe-nos o calor de uma soul dançável e infectada pela cena acid jazz dos anos 80, repleto de convidados para colmatar a saída de Melo D, tais como Orlando Santos, The Last Poets, Fernanda Abreu ou até Simone de Oliveira.

– Gonçalo Oliveira


[D’Angelo] Voodoo

Quando Michael Archer se mudou para os Electric Lady Studios para gravar o sucessor de Brown Sugar, a ambição era grande: criar um disco que ombreasse com todos os clássicos que o tinham formado.

Prince, James Brown, Al Green e Joni Mitchell são os nomes mais apontados para esta fase, os seus “Yodas”, mas Stevie Wonder, Jimi Hendrix e Marvin Gaye faziam, também, parte do grupo de ilustres para quem olhava com admiração e devoção. Ao lado de Questlove, o baterista, e Russell Elevado, o engenheiro de som, o prodigioso músico informou-se avidamente sobre a música (e vida) dos seus ídolos, tocou versões dos temas deles até à exaustão e construiu um sofisticado vocabulário musical que lhe permitiu chegar mais perto daquilo que procurava — e ainda lhe adicionou a vontade de canalizar a intrincada veia rítmica de Dilla. Tudo para dar certo.

Com um elenco de virtuosos à sua disposição (Pino Palladino, Charlie Hunter, James Poyser e Raphael Saadiq, entre outros), D’Angelo criou um álbum que atravessa estilos e temáticas, algo só possível nas mãos (e na voz) de alguém que entendeu que só podia olhar para o futuro quando compreendesse o que tinha ficado para trás. A peça central da era dos Soulquarians e um novo pilar para o r&b, o funk e a soul que se fez a partir daí.

– Alexandre Ribeiro


[Dilated Peoples] The Platform 

Quando falamos em liricismo é fácil destacar vários exemplos vindos de Nova Iorque. No início do milénio, era aí que o rap underground melhor se expandia, muito graças à vasta oferta de MCs dotados que por lá desabrochavam. Se procurássemos por exemplos semelhantes na costa oposta, o mais normal seria depararmo-nos com os Dilated Peoples, trio composto por Evidence, Rakaa e DJ Babu.

O grupo foi formado em 1992 mas tardou em compilar os primeiros resultados do tempo investido em estúdio. Quatro singles pela ABB Records bastaram para que a histórica Capitol Records os convidasse para editar o tão aguardado álbum de estreia. The Platform aterrou nas lojas no ano 2000 e afastou-se por completo da vaga gangster rap que então reinava na costa oeste dos EUA, oferecendo aos ouvintes um cardápio de rimas conscientes e de digestão mais lenta.

– Gonçalo Oliveira


[Eminem] Marshall Mathers LP

Recuemos até ao ano 2000. Estamos em plena cerimónia dos MTV Music Awards. Eminem arranca a interpretação de “The Real Slim Shady” no coração da 6th Avenue, Nova Iorque, perante uma armada de Slim Shadys vestidos a preceito. De súbito, invade o Radio City Hall Music, local onde decorre o evento, e despeja um conjunto de rimas provocadoras e incisivas no colo de uma plateia recheada de celebridades que se limita a levantar os braços e a ensaiar uns movimentos desajeitados no ritmo da canção. Esta histórica actuação ainda hoje consegue ser o melhor espelho daquilo que Eminem fez com o hip hop na altura: tirou-o da rua e levou-o até ao domicílio do mais profundo leigo na matéria, muito antes de Kanye West ter dado a tacada final para o mainstream e a sua democratização.

The Marshall Mathers LP é um marco no hip hop em geral e particularmente na carreira de Eminem: não existirá no seu percurso artístico outro álbum tão autobiográfico. Numa rodela apenas, Marshall Mathers consegue entregar-nos um exímio dossier da sua vida, recheado de histórias metaforizadas (“Stan” e “Kim” servem de exemplos), instrumentais de elevada mestria (Dr. Dre no comando) e versos de uma genialidade até então anónima para o ouvido comum. 

– Manuel Rodrigues


[Erykah Badu] Mama’s Gun

Que período de intensa descoberta e realização há-de ter sido aquele em que nos Electric Lady Studios de Nova Iorque os Soulquarians encontraram para a geração hip hop um espaço na mais ampla e sofisticada história da música negra cozinhando álbuns brilhantes para D’Angelo, Common, Roots, Q-Tip, Slum Village, Bilal, Talib Kweli ou, claro, Erykah Badu. E ao carregar no play, deixando “Penitentiary Philosophy”, a faixa de abertura de Mama’s Gun, massajar-nos os ouvidos e acordar-nos a consciência, percebe-se imediatamente que a fórmula do neo-soul que Baduizm, editado três anos antes, parecia ter seguido à risca é aqui elegantemente implodida, trocando-se a sintonia com as playlists das coffee shops carregadas de cartazes alusivos ao fair trade por um mais natural encaixe na mais soturna e fumarenta atmosfera dos clubes de jazz de Greenwich Village (Blue Note, Village Vanguard, Birdland, Small’s…) onde, quase de certeza, Badu e os restantes cats acabavam a noite após as sessões no Electric Lady, situado nesse mesmo bairro. É ouvir a síncope de “Booty”, naquela bateria seca do senhor Ahmir, Clavinet staccato e metais em contida ebulição, para se saber que aqui estava uma artista em topo de forma, rodeada de feras que transpiravam música por cada um dos seus negros poros.

– Rui Miguel Abreu


[Ghostface Killah] Supreme Clientele

Os anos 90 trouxeram-nos os Wu-Tang Clan, inegavelmente o colectivo de maior culto para a cena rap de Nova Iorque. RZA e os seus pupilos colocaram as ruas em sentido com o clássico Enter the Wu-Tang (36 Chambers) e, a partir daí, grande parte dos MCs do grupo soube tirar também proveitos a título individual, editando trabalhos a solo por diferentes editoras graças a manobras contratuais sem precedentes na indústria musical.

A Ghostface Killah calhou-lhe a Epic Records, que ainda em 1996 alojou Ironman, o álbum de estreia, no seu catálogo. Quatro anos depois, o rapper dava um seguimento às suas aventuras enquanto Tony Stark, um super-herói das ruas cuja principal arma era alimentada por combinações sucessivas de rimas, enquadradas entre conflitos policiais, armas de fogo e respostas a uma nova geração de MCs da Grande Maçã que ameaçava tirá-lo do trono, como 50 Cent ou Mase.

– Gonçalo Oliveira


[Jay-Z] The Dynasty – Roc La Familia

O que poderá ser dito acerca de um álbum que medeia duas obras como Vol. 3… Life and Times of S. Carter The Blueprint? Muita coisa. Por um lado, sucede a uma verdadeira quadra de luxo, inspirada por um sublinhado historial de vivência de rua e fomentada pela construção de fidedignos documentos para entregar ao microfone. Por outro, antecede um dos seus maiores episódios discográficos, residência oficial de “Izzo (H.O.V.A.)”, “Girls, Girls, Girls”, “Jigga That Nigga” e “Song Cry”, entre outras. É uma posição ingrata, diga-se de justiça.  

The Dynasty: Roc La Familia é mais uma compilação da Roc-A-Fella Records do que propriamente um álbum de Jay-Z, dada a lista de convidados especiais resgatados à sua emblemática editora, ou seja, acaba por não ser um álbum tão centrado em si como os anteriores – não deixando totalmente de o ser, como é óbvio – mas sim uma obra com uma perspectiva mais familiar. Este é também o primeiro disco de Hova sem a mão de DJ Premier, onde as produções são entregues a jovens promessas como Just Blaze, The Neptunes e um tal de Kanye West. O álbum serviria de rampa de lançamento para estes nomes, principalmente para o colectivo de Pharrell Williams e Chad Hugo, com o single “I Just Wanna Love U (Give It 2 Me)”. 

– Manuel Rodrigues


[Jill Scott] Who Is Jill Scott? Words and Sounds Vol. 1

Terá o critério de admissão nos Soulquarians sido capricho? Não que a música pareça arbitrária, mas se Jill Scott não é membro, podemos questionar o regulamento. Na viragem para o novo milénio, a trupe engendrou a revolução do hip hop e da soul, feita neo: D’Angelo, Erykah Badu, Questlove, Common…

Falta a soprano que firmou um tratado de transparência no amor e sexo, na poesia e nas batidas. Who Is Jill Scott? A resposta dá-se num primeiro volume que estruge e flui, sem a mínima deferência a quem lhe queira farejar um som “datado” — da percussiva “Do You Remember” à atmosférica “Gettin’ in the Way” — ou uma palavra menos bem colocada, da paranóia em “Watching Me” à soltura libidinal de “Love Rain”.
O disco bebe da mesma água que Baduizm e Brown Sugar; em 2000, já D’Angelo e Badu viravam a página para Voodoo e Mama’s Gun, o que pode explicar a não-sintonia soulquariana. Pouco importa: Words and Sounds foi a prova dos nove para Jill Scott como pilar da soul arejada, elevada, perpetuamente nova.

– Pedro João Santos


[Mind da Gap] A Verdade

Ace, Presto e DJ Serial não só foram dos primeiros casos a oferecer um longa-duração à discografia do hip hop português, como também conseguiram alcançar uma estética o mais fiel possível ao que estava a ser feito do outro lado do oceano, descolando-se de projectos de fusão que então surgiam nos arredores de Lisboa como General D ou Da Weasel em Sem Cerimónias, o álbum de estreia, de 1997.

Três anos depois, nomes como Boss AC, Sam The Kid ou Mirco já lhes tinham seguido as pisadas e a fasquia elevava-se para perceber se um grupo pioneiro como os Mind da Gap tinham o que era necessário para acompanhar o desenrolar da história. A Verdade disse-nos que sim. Ao segundo LP pela NorteSul, o trio gozava de um estatuto ao alcance de poucos e fez questão de o afirmar, sem nunca colocar de lado a sua essência, com “O Nosso Nome” ou o eterno clássico “Todos Gordos”, aproveitando também para dar balanço aos primeiros passos dos Dealema e a estabelecer uma ponte com Espanha através dos La Familia.

– Gonçalo Oliveira


[OutKast] Stankonia

“So Fresh, So Clean”, “B.O.B.” e “Ms. Jackson”, três das maiores canções que o hip hop gerou na sua história com mais de 45 anos, seriam o suficiente para que este projecto fosse digno de destaque. Felizmente, Stankonia, o quarto álbum dos OutKast, foi muito para além disso: o que ouvimos é uma epopeia musical insana que, apesar de encontrar o centro no rap, extravasa todas as classificações possíveis.

Numa entrevista com a Creative Loafing, Mr. DJ, uma das três partes da equipa de produção Earthtone III — os outros dois são Andre 3000 e Big Boi –, disse que todos os elementos da banda estavam no seu pico criativo quando se trabalhou no sucessor de Aquemini, um dado que confirma aquilo que se ouve durante mais de uma hora: naquela altura, a dupla de Atlanta parecia capaz de transformar qualquer pedaço de som num delírio artístico digno de ser notado pela sua inovação sem deixar de ser comercialmente apelativo.

O Sul tinha mesmo algo a dizer, e o domínio total chegaria anos depois com todas as faces dos OutKast a serem absorvidas por aqueles que lhe seguiriam, desde Young Thug e Future a EarthGang, Migos e 6LACK.

– Alexandre Ribeiro


[Quasimoto] The Unseen 

É fácil descartar o alter-ego movido a hélio – e que se representa como um estranho boneco amarelo de cigarro ao canto da boca… – de um produtor de elite que tanto ofereceu ao universo hip hop como Madlib, mas Quasimoto não é uma mera brincadeira de estúdio. E para tal concluir basta ouvir algumas das barras de “Microphone Mathemathics” do álbum de estreia deste MC nada corcunda no que às rimas diz respeito: “I was born in 1973/ I got five brothers we lived up on 9th street/ On the 22nd of December/ My pops shot 6 cops, I remember/ Never got caught/ 10 stitches/ Got burnt by 7/ In the 12th grade thinkin’ about million dollar riches/ On the 3-4, I broke about a dozen mics/ On the 1, 2s, I took out a hundred crews/ 365 days to a year, subtract it off your life/ In 2000, that’s the end of strife/ It’s like some people ain’t got no mental sight/ You try keepin’ it real (yet you should try keepin’ it right)”. Conseguem subtrair daí a raiz quadrada? Sobre tarolas cortantes, subcaves de graves e samples de jazz, Lord Quas impõe-se do lado certo da força que nos abana de forma invisível a cabeça.

– Rui Miguel Abreu


[Radiohead] Kid A

Poucas são as introduções tão cativantes e afirmativas quanto “Everything In Its Right Place”, elemento necessário para preparar qualquer um para o disco mais controverso de Radiohead. Saídos de um trabalho monumental, saber dar um passo tão grande implica arriscar.

Kid A assemelha-se pouco aos seus outros registos, embora junte ideias que neles encontramos — a apologia rock de OK Computer revê-se em “Optimistic”, o corpo estranho do álbum. A fanfarra pastiche (irónica?) de “The National Anthem” ou a melodramática “How To Disappear Completely” facilmente se imaginavam como algo saído da banda (embora esta última tenha um mantra de cordas dissonante que espelha ousadia e virtuosismo composicional admirável). No entanto, as drum machines acutilantes em “Idioteque”, ou as faixas ambient “Treefinger” e “Untitled” deixam a sensação de se estar a tentar afirmar um ponto de ruptura, criando, dessa forma, as reacções mais extremadas (há quem considere o pior disco e há quem considere o melhor). Definitivamente marcante.

– Vasco Completo


[Sade] Lovers Rock

Há 20 anos, os Sade lançavam Lovers Rock, cujo título sugeria o repescar de um dos reggaes que musicaram Londres nos anos 70 e 80. Não o roots reggae, insurreição da juventude negra marginalizada (filha da emigração caribenha, convidada a “reconstruir a economia débil” do Reino Unido e logo descartada). De lá da barricada, o lovers rock era o som feminino que se deixou encadear, e depois aveludar, pelo amor.

O quarto álbum do grupo, embora não seja um facsimile do estilo, reteve a aura ao reproduzir esse processo — apenas assumiu outro ponto de partida. Modernizando o seu som de assinatura pela neo soul, numa sopa downtempo, os Sade insuflaram a toada orgânica com o baixo lânguido, o reggae romântico que alimentou a vocalista Sade Adu na sua adolescência.

Com a sua arenosa voz num máximo de serenidade, nasceu um clássico. Foi o golpe de asa dos esquivos Sade, numa encantação à superfície descomprometida, mas na essência o seu álbum mais petrificante. Do amor que é radical nos mais pequenos toques.

– Pedro João Santos


[Slum Village] Fan-Tas-Tic, Vol. 2

Este Fantastic Vol. 2 mereceria estatuto de clássico intocável caso não tivesse conhecido um parto tão acidentado, com falsas partidas a resultarem em edições bootleg em 1998 e 1999. Mas quando finalmente teve edição digna desse classificativo, quando corria o ano de 2000, este trabalho dos Slum Villa de Baatin, T3 e J Dilla (a formação clássica de uma entidade que conheceu diferentes elencos) conseguiu, finalmente, agarrar-se com unhas e dentes ao tempo, assegurando o seu próprio futuro graças a beats de recorte clássico, polvilhados de funk, com booms e baps da estirpe certa e rimas sólidas entregues por uma dupla em perfeita harmonia (a lenda diz-nos que a génese do grupo na cave de Dilla passou por desenvolverem a capacidade de rimarem em takes únicos e em tempo real para um gravador DAT, contornando assim a falta de recursos). Isto é hip hop no seu estado mais depurado: MCs, microfones, um produtor e uma MPC, todos com fome e todos a criarem de forma livre sem qualquer outro tipo de pressão que não fosse o seu simples desejo de deixarem uma marca na cultura.

– Rui Miguel Abreu


[The Avalanches] Since I Left You

Assumindo desde já um ponto de vista estritamente pessoal, permitam-me que confesse que há apenas um reduzido conjunto de canções que conseguem igualar o impacto emocional do tema-título do álbum de estreia dos Avalanches. Editado numa época de profundas e extremamente privadas convulsões, este tema ganhou uma dimensão alternativa de banda sonora de um filme íntimo ao ponto de, por muito que a razão me dissesse que Jeanne Salo, vocalista dos The Main Attraction aqui samplada, cantava “since I left you/ I found the world so new” o que os meus ouvidos escutavam, porque o meu coração sentia, era “since I left you/ I found the world so blue”. Mas nesse pequeno e ultra significante equívoco escondia-se, afinal, uma das pequenas maravilhas desta obra prima da colagem sampladélica: uma canção que, consigo perceber hoje, tem um pulsar subtilmente disco e é carregada de luz e positivismo (“welcome to paradise”, diz-nos outra voz, logo no arranque do tema) tem tantas camadas que à época era igualmente possível extrair dela uma tão doce quanto dolorosa melancolia. Criado por Darren Seltmann e Robbie Chater, este trabalho orquestrou centenas (a dupla australiana garantiu mesmo serem ao todo cerca de 3500!) de samples, numa sinfonia que é muito simplesmente uma das mais extraordinárias homenagens ao universo pop impresso em vinil. É impossível não descobrir novas e pequenas fontes de maravilhamento a cada nova audição. Mesmo vinte anos depois…

– Rui Miguel Abreu


[Wu-Tang Clan] The W

Será impossível falar-se de marcos do hip hop dos anos 00 sem incluir The W, sagrado templo de onde se retiram artefactos como “Careful (Click, Click)”, “Hollow Bones”, “One Blood Under W”, “Protect Ya Neck (The Jump Off)”, “Do You Really (Thang, Thang)” e “Gravel Pit”. Obra de destaque a nível de atitude, rimas e produção (atente-se na qualidade dos instrumentais), The W representa um salto na abordagem musical do colectivo se comparado com os discos anteriores. A dimensão espiritual é a mesma, contudo, desfruta de uma maior coesão entre as partes envolvidas, bem como de um diferente tratamento no que toca aos temas e à própria construção da obra – os puritanos dirão que é mais comercial, e com alguma razão.  

Desde a sua primeira amostra discográfica que os Wu-Tang Clan nos acostumaram a uma mística ligada às artes marciais, com especial incidência no Kung-Fu, resgatando samples a clássicos cinematográficos e mantendo-se próximos dos santificados ensinamentos (ler The Tao of Wu, escrito pelo líder RZA). Em The W essa faceta surge mais meditativa e menos impetuosa, mostrando que existe na espada espiritual um importante gume para afiar. Enter the Wu-Tang (36 Chambers) poderá ser visto por muitos como o grande clássico do grupo nova-iorquino, mas The W não lhe fica nada atrás.  

– Manuel Rodrigues


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